[Maria Helena Vieira da Silva: artística plástica, apátrida, criadora de mundos]
Lúcia Vicente, historiadora e actriz, deparou-se com uma realidade deprimente em 2015 quando estava grávida da sua filha Emmeline: a grande maioria dos livros infantis disponíveis ainda giravam em torno do clássico patriarcal da princesa que aguarda serenamente ser salva pelo príncipe. Não era esse o tipo de histórias que Lúcia queria que acompanhassem a sua filha na hora de dormir, mas sim histórias que lhe mostrassem que ela podia ser o que quisesse:
"O mais importante era que ela adormecesse com a certeza de que podia sonhar com o quisesse e que não seria o facto de ter nascido mulher que a impediria de alcançar, lutar, almejar o que quer que fosse. Queria que ela crescesse com a certeza de que todas as pessoas devem ser livres"
Vai daí, Lúcia começou a fazer uma lista com nomes de portuguesas que considerava inspiradoras. A esses nomes juntaram-se muitos mais e no fim ela seleccionou quarenta e dois, número que não é aleatório: assinala os quarenta e dois anos passados desde que em Portugal as mulheres obtiveram o direito de votar em igualdade de circunstância com os homens [2 de Abril de 1976]. O livro com desenhos da ilustradora e designer Cátia Vidinhas saiu em Outubro do ano passado e vem ajudar a colmatar não só a falta de histórias alternativas às tipicamente patriarcais, mas também uma falta em livros deste género sobre personalidades femininas: não terem nenhuma portuguesa.
[Luísa Todi - actriz, cantora lírica internacional, mezzo soprano extraordinaire]
Mesmo nós que vivemos aqui podemos ser levados a crer que dificilmente muitas mulheres poderiam sobressair...Num sítio tão pequeno e tão profundamente patriarcal. Mas o certo é que elas existem, e não poucas. E quando percebemos isso começamos a pensar: se elas existem então porque não são conhecidas nem celebradas? Porque não são mencionadas nos livros de História? É muito curioso ver o tipo de personagens que a História portuguesa celebra...Ou em alguns casos endeusa. A existência de um esquema misógino que apaga\mantém na sombra os feitos femininos torna-se mais do que clara.
"As meninas não precisam de histórias onde sejam resgatadas por príncipes, precisam de histórias em que possam inspirar-se. E os meninos precisam que se lhes tire dos ombros o peso de resgatar as princesas e precisam, acima de tudo, de compreender que as mulheres podem e conseguem mudar a História, lado a lado com eles"
Ora, passando pela capa (que é por si só uma belezura) e entrando temos: a página direita que se abre com o nome da biografada, a data de nascimento e morte (se for o caso - foram incluídas mulheres que ainda estão vivas), uma breve descrição das actividades desempenhadas (algumas mais poéticas, como se pode ver no caso de Vieira da Silva) e depois o texto. As ilustrações ocupam toda a página esquerda. Simples mas eficaz. As personagens não estão organizadas sob nenhuma ordem específica.
[Matilde Bensaúde - fitopatologista, investigadora, directora da inspecção dos Serviços Fitopatológicos]
Naturalmente numa só página não dá para colocar toda uma vida especialmente de mulheres que as tiveram tão cheias e em alguns casos também longas em anos. Mas dentro do que tenho lido neste tipo de livros, achei algumas destas biografias até bastante completas.
[Marquesa de Alorna - poetisa, liberal, criadora da organização secreta Sociedade da Rosa]
Há alguns nomes que são mais conhecidos. Gostei de ler sobre outras facetas da vida destas mulheres, por exemplo sobre Beatriz Costa de quem temos a ideia que era apenas uma actriz de franja. Como é habitual fui pesquisar mais a seguir. Já outras são realmente ilustres desconhecidas...Há textos que são mais poéticos ou mais focados em algo em particular como o texto sobre Paula Rego que aborda o tema da depressão. Acabei a ler uma interessante entrevista no Público com ela e o seu filho mais novo, que em 2017 lançou um documentário sobre a mãe - Paula Rego, Secrets & Stories.
Já na biografia de Sarah Afonso torci um pouco o nariz à escolha de focar o momento em que ela abandona a pintura para se dedicar à maternidade, não porque não ache essa uma opção válida mas porque provavelmente ela teria continuado a pintar se as circunstâncias fossem outras...Sabemos quem é que acaba sempre sacrificado. Independentemente da abordagem todos os textos são claros, com um tom informal, por vezes com recriação de episódios e do que as personagens poderiam estar a sentir. Também são bons pontos de partida para iniciar conversas com as crianças sobre assuntos importantes.
As ilustrações são outra belezura: as cores, o traço...Há qualquer coisa de mágico que se desprende destes desenhos. Complementam bem a parte escrita. Por exemplo, quando lemos que a Marquesa de Alorna esteve tantos anos presa num convento, tempo que ela aproveitou para escrever e ler, aquela ilustração torna-se ainda mais especial.
Encontramos aqui mulheres em variadas áreas incluindo aviação, activismo, jornalismo, moda, dança, uma polícia...E de diferentes proveniências: umas eram de famílias liberais e\ou com posses, outras nem não tiveram acesso a uma educação formal...Não aprecio particularmente o detalhe de alguém ser a primeira cavaleira tauromáquica, se bem que era giro ver as reacções a uma mulher negra vestida de cavaleiro entrando pela arena a dentro...Apenas um dos muitos episódios da agitada vida da Preta Fernanda, uma figura da Lisboa boémia do século XIX e inícios de XX.
[Virgínia Quaresma - jornalista de reportagem, feminista, símbolo máximo de minorias]
Fiquei feliz de encontrar Leonor da Fonseca Pimentel (jornalista, republicana, a portuguesa de Nápoles) pois a primeira e única vez até agora que vi o seu nome foi num romance da Susan Sontag. Enfim...Em termos de diversidade racial tem quatro entradas e de diversidade sexual tem duas. No final há uma secção que inclui a explicação de termos como escravatura, feminismo, ditadura, etc. Uma pequena enciclopédia cheia de women power que se lê e se folheia com agrado.
Já está acabado e vou então expor em mais detalhe o que achei dele. Atenção que esta é daquelas opiniões impopulares - que posso fazer? Para mim, o primeiro problema deste livro está relacionado com a própria construção da história. Depois de serem estabelecidas as relações familiares de Circe e de uma trapalhada resultar no seu exílio na ilha de Eana, ainda no começo do livro, o que se segue é um saltitar de episódio em episódio mítico: Circe faz a sua vidinha de bruxa, a colher flores e a fazer poções. Situação A acontece. Situação A é resolvida. Passamos para a B. E assim sucessivamente.
Não há direcção, clímax...Acho que dá para eliminar capítulos sem que isso faça uma grande diferença. As personagens são pouco desenvolvidas. É tudo estereotipado, sem espessura...Algumas só aparecem por umas poucas de páginas e depois desaparecem para não mais voltar. As interacções entre elas são igualmente superficiais. Eana é tipo uma estação de serviço...O segundo problema é que não me parece que este livro acrescente nada de novo ao que já foi recontado milhares de vezes. Precisamos de novas perspectivas que nos obriguem a desviar os olhos da narrativa dominante...
(Circe, Frederick Stuart Church, 1910. Oil on canvas, Smithsonian American Art Museum)
Muitas vezes estes livros são incluídos em listas feministas, porque o feminismo é por excelência o corte com a narrativa tradicional. Mas em Circe a autora simplesmente recorta alguns mitos e encaixa-os na narrativa...Para isso basta-me abrir a Wikipédia. Há breves tentativas de questionamento e umas tiradas feministas que deixam ver que este livro poderia ter sido diferente. Mas no fim nem a Guerra de Troia, nem o Minotauro, nem Penélope...Ninguém terá sido resgatado do papel em que costuma vir embrulhado. E apesar da história ser contada por uma personagem feminina a visão tem bastante de patriarcal. A autora parece ter pouco apreço pelas suas intervenientes femininas...
Há poucas personagens que prestem no geral, mas as mulheres são especialmente ruins. Qualidades que são valorizadas como coragem, persistência e gosto pelo desconhecido...Estão todas do lado dos homens. Já elas são umas víboras, fúteis, mesquinhas, vingativas...As descrições estão cheias destes adjectivos. E embora se mencione brevemente que as ninfas sofrem abusos, elas são pintadas da pior maneira possível. Este livro está cheio de girl hate.
(Circe Offering the Cup to Odysseus, John William Waterhouse. 1891)
Circe detesta as primas, as tias, a mãe, a irmã (que é muito má), as ninfas que vivem com ela...As suas interacções positivas são com homens e quando perante outra mulher a interacção é sempre tensa, como duas gatas prontas a atirarem-se uma à outra. Por exemplo, Circe preocupa-se com o estado em que os marinheiros chegam à ilha, mas quando Alke lhe aparece ali de repente ela fica logo toda eriçada. Só no fim é que a autora permite que Circe aprecie a companhia de outra mulher e mesmo assim é quase um nada, que gira em volta de homens e que começa com um confronto...Até elas chegarem à conclusão que a culpa afinal é da cabra da Atena. Que é isto? Um drama da secundária?
Há slut-shaming e vários clichés (raparigas bonitas não podem ser inteligentes, não sou como as outras!, abuso sexual como mera ferramenta narrativa...). E claro que tem de existir romance, mesmo quase sem química entre as personagens. Se o mito diz que Circe precisa de um falo, então ela aqui o terá - para ser feliz e cumprir a sua missão patriarcal de fêmea (Medeia, outra cabra, vai morder a língua, depois de ter dito que a nossa protagonista era uma spinster que tresanda a solidão!) e para que possa ter alguém que lhe faça reparações e pequenas obras. Não é que Circe não as possa fazer, só que está muito ocupada com feitiços (o que é giro) e com...Lavar e cozinhar (o que não é tão giro).
Gostava de ter conseguido me importar mais com a nossa protagonista. E teria gostado que ela fosse um pouco mais badass como parece naquele quadro, em vez de constantemente insegura e carente. O modo como se vê a si própria é por vezes perturbador ("Desde então, eu me perguntei se ele usava em mim aqueles mesmos charmes que tinham funcionado nos marinheiros. Pois eu era como uma vaca bem alimentada, plácida e sem questionamentos"). Está hora de eu navegar para outras águas.
(Rosalind Franklin por Mike Carey e Eugenia Koumaki)
"Rosalind is alarmingly clever. She spends all her time doing arithmetic for pleasure."
Continuando na demanda por livros que combinem arte e empoderamento feminino, tropecei (e com grande entusiasmo) neste: Femme Magnifique: 50 Magnificent Women Who Changed The World- o título já dá uma ideia do que vamos encontrar no interior. A ideia foi de Shelly Bond, uma experiente editora de comics, e surgiu como resposta a um evento particularmente difícil:
"The idea came about immediately after the election (...) Like many US citizens, I was saddened by the missed opportunity for a woman in the White House. But I was truly horrified by the negativity generated online. I felt like someone needed to make a call-to-arms within the comic book community so we could all move forward, channel the anger into positivity."
Em parceria com Kristy e Brian Miller do estúdio de designe Hi-Fi Colour, Shelly concebeu a ideia de uma antologia de comics, de capa dura e a cores com mais de cem páginas que celebrasse cinquenta mulheres incríveis que mudaram (e continuam a mudar) a História com a sua ousadia e perseverança.
"It was crafted to document our history of powerful, inspirational women and to remind the masses that women have already changed the world, and will continue to do so. We’re unflappable, and we deserve to be saluted and celebrated."
Os textos ficaram a cargo de um grupo variado de pessoas que escrevem comics - autoras e autores escolheram as mulheres que desejavam homenagear e gente com jeito para o desenho providenciou a parte gráfica para cada secção. Para cada biografada há uma página de introdução com uma pequena ilustração e uma citação e depois seguem-se três páginas de texto e imagem em formato BD. O projecto foi um sucesso no kickstarter com mais de mil contribuidores e o livro foi lançado em 2017.
(Ursula K. Le Guin por Robin Furth e Devaki Neogi)
A estrutura é sempre a mesma, mas naturalmente o estilo dos desenhos e dos textos varia muito. Cada dupla de autor (a) e artista (em alguns casos a mesma pessoa escreveu e desenhou) fundiu o seu traço e história pessoais com a vida da biografada. Esta diversidade torna o livro muito apelativo e cria expectativa para o que se vai ver nas páginas seguintes. Uma celebração não só destas cinquenta mulheres mas também da BD como importante produto da cultura pop e veículo para falar de problemas sociais. E do talento das mulheres que trabalham todos os dias neste (ainda) clube dos rapazes. Alguns textos têm mais detalhes biográficos, outros têm menos. Alguns são bem pessoais e tocantes. Autoras e autores contam como conheceram aquela personagem, como foram inspirados (as) por ela ou como ela as (os) ajudou a ultrapassar situações difíceis na vida.
(Brenda Fassie por Lauren Belikes e Nanna Venter)
Acho que esta abordagem diferencia o livro e é importante para as raparigas não só conhecerem estas mulheres mas verem realmente na prática como elas pode ser um exemplo.
(Artemisia Gentileschi por Marguerite Bennet e Jen Bartel)
"I moved in a world of saints and angels, naked nymphs and ornamental wifes (...) The eyes of men had made these. The eyes of men consumed them. We were so rarely in our own story."
Há pessoal que acha que a representatividade não tem importância...Só que as miúdas não são burras. Sabem muito bem que quem estão a ver no ecrã a salvar a cidade é um homem, não uma mulher. Não é alguém como elas. Se elas nunca virem uma mulher a salvar nada só a fazer de vaso decorativo o que vão pensar? Super-heroínas não prestam. Tristemente, meninas pequenas já são capazes de dizer várias coisas que uma mulher não pode fazer. Mas com os rapazes não é assim.
Ficamos comovidos quando um garoto diz que quer ser como o jogador de futebol. E ainda lhe providenciamos mais exemplos, um exagero e que não inclui mulheres. Deixem os rapazes inspirarem-se em personagens femininas! Não é mal nenhum, como aliás este livro mostra. O que tem mal é isto: o Rotten Tomatoes mudou a sua política porque homens brancos irados por a Capitã Marvel "não ser um filme para eles" estavam a dar-lhe pontuações baixas de propósito ainda antes de ter estreado. E porque resistimos a fornecer às miúdas exemplos com que se podem identificar? Aqui está uma notícia interessante que encontrei: "The skeptical doctor played by Gillian Anderson on The X-Files helped inspire women to go into STEM careers, according to a new report". Outro exemplo: Mae Jemison tinha como inspiração a tenente Uhuru do Star Trek. Fico a pensar quão longe ela terá ido...
(Valentina Tereshkova, Sally Ride, Kathryn Sullivan, Anna Lee Fisher, Mae Jemison,
Eileen Collins e peggy Whitson por Cecil Castellucci e Philip Bond)
Em termos de diversidade, não é tão extenso como as Raparigas Rebeldes (contando que este tinha o dobro das personagens) e é um bocado mais americano. É por isso que é muito positivo haver à disposição vários livros diferentes que celebrem conquistas femininas: complementam-se e ao mesmo tempo preenchem diferentes necessidades. As Rebeldes é mais voltado para meninas enquanto este é mais para pré e adolescentes. Tem mais diversidade corporal e LGBT e tem actrizes, youtubers, várias escritoras...No fim ficamos com uma certeza: estas mulheres são verdadeiramente magnifique.
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