- Vi nas notícias que o consumo de broa foi desaconselhado em alguns sítios e que aparentemente o problema foi a farinha que estava contaminada. Já tinha ouvido dizer que comer farinha crua faz mal, lembrei-me eu do nada, e disse isto aos presentes na mesa, mas ao mesmo tempo veio-me à mente as muitas vezes que comemos massa crua dos bolos - e gostaria de dizer que larguei esse hábito há anos, mas a ultima vez que comi foi a semana passada. Talvez hoje em dia os pais já não deixem as crianças besuntarem-se com os restos da massa do bolo - nós vivíamos no perigo, rodeados de bolo de bolacha com ovos crus e café (vi alguém a perguntar num comentário no Youtube qual era a alternativa ao café no tiramisu por causa das crianças) e de mousse de chocolate com os ovos crus e o álcool que aqui em casa costuma ser whisky, a dose meio a olho.
Algumas coisas devem mesmo já ter caído em desuso - acho que agora os pediatras já não dizem para se colocar miolos na sopa dos bebés, comi muito. E já ninguém corre o risco de trincar uma fatia de bolo-rei e partir um dente ou morrer engasgado com um objecto não comestível, disto estava livre já que não gosto de bolo-rei. Uma coisa que me causava grande terror era aquele fogo de artifício feito com canas. Uma pessoa ia pela rua da aldeia a cantarolar o meu querido mês de Agosto, levava com aquilo na cabeça e adeus. Era o Final Destination antes de este ser inventado.
- Costumava ter medo do escuro já numa idade tardia, depois passou talvez porque percebi que o maior perigo do escuro não eram criaturas escondidas nos cantos mas tropeçar em qualquer merda que devia ter arrumado mas deixei no chão. Também me passou o medo de agulhas. Se o problema é o sangue - se durante o período já tive de andar baixada a limpar sangue do chão, um bocadinho numa agulha não é nada. Mas tê-las espetadas na mão dispenso bem, assim como ser espetada no rabito, não tanto pela dor mas mais pela humilhação. Ainda tenho medo de alturas - não que isso me tenha impedido subir a alguns castelos: sentia-me tão empoderada quando chegava ao topo e admirava a paisagem, até perceber que depois tinha de descer. Nem subo para cima de cadeiras. Tenho medo de qualquer coisa que me possa aleijar ou seja de tudo.
Estava a ouvir um podcast (ficcional) e a personagem mencionou a sua pulsação acelerada quando tinha de ir a um balcão pedir panquecas. Derramei uma lágrima de reconhecimento. Há pessoas que não têm este problema: chegam ao balcão do Mc, sem sequer terem treinado o pedido antes, pedem clara e assertivamente, alteram rápido as suas intenções se não houver o que querem, não tremem ao pagar e depois levam confiantes nos seus passos o tabuleiro até a mesa onde comem como se não tivessem acabado de realizar algo incrível. Detesto essas pessoas. Não é verdade - dá jeito mandá-las ir buscar a comida enquanto ficamos sentados na mesa a pensar se no caso de acontecer alguma coisa dará tempo para chegar à porta e fugir.
- Não percebo aquela expressão "fazer de advogado do Diabo". Em primeiro lugar: o Diabo precisa de advogado? E se precisa porque iria recorrer a alguém a tentar passar por esperto na internet em vez de a um escritório credenciado? Será que precisa mesmo o Diabo de sair dos seus domínios infernais para encontrar um advogado? Agora estou a ser ofensiva - quando alguém usa esta expressão quase de certeza que vem aí algo ofensivo. Red flag.
- Ainda outro dia vi um anúncio na TV onde eram feitas estas três asserções: que os humanos são os únicos que contam histórias uns aos outros, que partilham o lanche e que tomam conta uns dos outros até ao fim da vida. Ora, a primeira ainda posso dar de barato embora os animais possam contar coisas, por exemplo pesquisando por orcas aparece esta informação: "Killer whales learn 'coordinated' attacks on sailboats, some observers say. Orcas may be teaching each other new ways to strike boats (...)"; a segunda, não tendo os animais o conceito de lanche será que não sabem partilhar? E a terceira parece-me insana, pensando em todas as espécies que vivem em grupo e as que acasalam para vida.
E esta história de uma gansa que dando por falta do seu parceiro foi até à clínica onde este estava a ser tratado a fracturas numa pata para o ver? E especialistas que dizem que as vacas formam relações complexas e que as suas dinâmicas são semelhantes às das famílias humanas? Este anúncio era a leite, já agora. Deviam ter acrescentado que só os humanos são capazes de atrocidades como manter uma orca, como vimos animais altamente inteligentes e sociais, em completo isolamento por mais de uma década. Elas têm razão em querer afundar barcos.
Também no fascinante mundo da publicidade topei com este reclame a pensos higiénicos - começou meio estranho com uma mulher a informar o operador de caixa do supermercado que estava com o período (um dia será um homem neste papel...Pelo menos quando o ego frágil de alguns recuperar daquele anúncio da Gillette), mas depois mostra líquido vermelho - e passou à hora de almoço, não às onze da noite como os anúncios dos lubrificantes! Esperemos que esta prática se torne comum. Eu devia ver mais TV - numa novela uma personagem queria ir para freira e vai outra e diz - a sério? Uma moça tão bonita...E tão boa pessoa. Quase caí da cadeira ao ouvir isto. Mas ela ia "casar com Deus" ou entrar no próximo The Conjuring? Fica a dúvida.
- Pode parecer que não faço mais nada senão comprar livros, mas entre os anteriores e estes já se passou um bom tempo. O Meu Nome é Lucy Barton já li mas não tinha em papel e o Manual Para Mulheres de Limpeza estava na minha wishlist. A Alfaguara tem estas edições tipo de bolso com capa dura e a um preço mais em conta. Os outros três títulos estavam no lixo, bem não exactamente dentro do lixo pois a pessoa seguiu aquela regra não escrita - se vamos deitar livros fora estes devem ser colocados num saco ou caixa junto ao contentor para outras pessoas poderem aproveitar. Não estão impecáveis e têm um cheiro um tanto esquisito, mas não é muito diferente de livros que já comprei em segunda mão. Porque é que alguém se quis livrar de um Saramago e de um Eça nunca saberemos...
1. Todos nós já vimos controvérsias ridículas na internet e eu achava que não podíamos ir mais longe do que a história do ananás na pizza - coloquem o que quiserem no raio da pizza, não interessa. Mas a controvérsia que se gerou sobre a cor da nova Ariel é de uma absurdidade atroz. Tentei não ligar mas quando o Youtube me começou a recomendar vídeos de uma hora que pareciam consistir em pessoas a arrancar cabelos por causa disto percebi que não há salvação. Porque na prática estamos a discutir exactidão num filme de animação sobre uma criatura mitológica que é metade mulher metade peixe. Será que o filme tem uma vilã que é mesmo roxa e sapateiras verdadeiras a dançar e a cantar? Não me parece. Tecnicamente então a Ariel não devia ser metade mulher metade pássaro?
2. Alguém pode dizer que é desnecessário entrar em detalhes mitológicos sobre mermaids e sirens porque a base do filme é o conto de Hans Christian Andersen que foi publicado em 1837. Se algumas pessoas se deram ao trabalho de ir pescar o conto original eu decidi também me dar a esse trabalho - que é como quem diz dei três cliques no Google. Numa versão em pdf diz: "a sua pele era clara e delicada como a pétala de uma rosa e os seus olhos azuis como o mar mais profundo mas tal como as outras ela não tinha pés (...)", mas numa versão online diz - "Her skin was as soft and tender as a rose petal, and her eyes were as blue as the deep sea, but like all the others she had no feet". O que parece ser consensual é que ela era a mais bonita das seis filhas do Rei dos Mares. Não vejo menção a cabelos ruivos, apenas que eram longos e espessos (Alice de Alice no País das Maravilhas não era loura. Fun fact) e o final é diferente. Desta mudança em relação ao original nunca vi ninguém queixar-se.
3. E é importante mencionar que as sereias não foram inventadas nem pela Disney, nem por Christian Andersen nem sequer pelos gregos. Histórias de sereias têm sido contadas por milénios ao redor do globo incluindo em Áfricae também em muitos países do Caribe.
"Mermaids, of course, don’t belong to one region. The earliest fish-women emerged in southwestern Asia’s ancient Mesopotamia, said Sarah Peverley, a cultural historian at the University of Liverpool in England. But almost every culture has a version of a mermaid,” she said. “They come in all shapes, sizes and skin color.”
"Water spirits abound in African stories. Water was the thin veil that separated the spirit from the real world, and those who could conquer water were believed to have strong powers"
[um outro artigo que encontrei menciona que as primeiras histórias de sereias terão surgido na Assíria 1000 anos antes de Cristo, quando a deusa Atargatis envergonhada por ter morto acidentalmente um humano se atirou a um lago. As águas não puderam esconder a sua beleza e ela foi transformada numa sereia. Os gregos associavam Atargatis a Afrodite que se diz ter nascido da espuma do mar]
"Mermaids have a long and enduring presence across the globe in literature, myth and spiritual beliefs (...) Black mermaids, notably the gender-fluid Mami Wata, have an important presence in African folklore; aquatic goddesses and spirits also exist in various forms in myths and legends across Asia".
"Mami Wata is a water spirit worshiped across West, Central, and Southern Africa. Mami Wata is known to heal the sick and bring good luck to her followers, but she is said to have a temper and will drown those who do not obey her (...) She possesses many forms, often appearing with the head and torso of a woman and the tail of a fish or as a snake charmer"
Na Wikipédia no final do artigo sobre Mami Wata podemos encontrar uma tabela com o nome de sereias\espíritos aquáticos presentes na mitologia de variados países como Angola (Kianda, a deusa banto das águas), Haiti, Benim, Zimbabwe (espíritos da água chamados Njuzu na mitologia do povo Shona), Guiana, Guiné, Jamaica (uma sereia que se acredita habitar em rios, River Mumma); África do sul - na cosmologia do povo Zulu encontramos Inkosazana, uma deidade associada com a agricultura e fertilidade e que é percepcionada como uma sereia.
Sereias podem ser sedutoras e enganadoras mas também podem ser ferozes protectoras como Maman de l'Eau um ser das lendas de Trindade e Tobago, metade mulher metade serpente, que pune quem cometa crimes contra a natureza. E podem também ser excepcionais guerreiras como Iara, uma sereia que se diz habitar no rio Amazonas. Algumas versões contam que a sua bravura e beleza despertou a inveja dos irmãos que a mataram e atiraram ao rio, outras dizem que ela soube do plano e que matou os irmãos sendo atirada ao rio como castigo. Foi salva por peixes ou pela deusa da Lua (Jaci) ao transformar-se numa sereia. Aborígenes australianos têm na sua mitologia histórias de sereias.
O problema não é a actriz ser negra. O problema é o foco em histórias eurocêntricas que estreitam a nossa visão: crescemos com pouquíssima representatividade e a pensar que qualquer personagem é branca por defeito. Mas não temos os direitos exclusivos de um mito.
4. E quando há representação nem sequer temos tempo de sentir algum contentamento porque como evitar a armadilha de discutir com pessoas que nem se dão ao trabalho de fazer uma pesquisa de minutos antes de vomitar ácido. Mesmo que o conto descreva a sereia como branca, não podemos esquecer o contexto - quando falamos de escritos situados numa época de ideias sociais e biológicas extremamente racistas e imperialismo colonial.
Ironicamente se pesquisassem um pouco não eram só sereias negras que iriam descobrir mas também que Hans Christian Andersen era queer e muitos estudiosos olham para A Pequena Sereia como uma alegoria para frustração pessoal do escritor - o facto de o príncipe casar com uma humana, com alguém "apropriado", enquanto a sereia se transforma em espuma reflecte o que aconteceu quando ele viu o homem que amava casar com uma mulher (uma coincidência: Howard Ashman que trabalhou na história e na música de vários sucessos da Disney incluindo A Pequena Sereia era gay e criou Ursula inspirado numa extravagante drag queen chamada Divine), em outras palavras é a história de um coração gay em sofrimento - que se sente fora do lugar num mundo heterossexual.
"He imagined a world deep beneath the sea, where a mermaid, seeking someone from another world—a human prince—finds herself rejected by him, even after she saves his life and, later, desiring that he see her as beautiful, convinces a sea-witch to give her legs. Nothing works. Unlike Walt Disney’s later, softer adaptation of “The Little Mermaid,” Andersen wrote an ending filled with pathos, where his mermaid, left alone and unloved, “dissolves” into seafoam (...) Indeed, like the ugly duckling, the little mermaid imagines something is ineradicably wrong with her (...)"
5. Chegados este ponto vale recordar que ainda estamos a falar de um filme de animação sobre uma criatura não real...Cuja cor altera zero por cento da história. E tendo em conta que o Árctico pode ficar sem gelo em 2030 não sei até que ponto podemos afirmar que esta questão ameace tanto o mundo a ponto de se criarem hashtags como fazer a Ariel branca outra vez.
6. Tempo de inserir uma nota pessoal: vi o filme original há uns tempos. Não gostei assim muito. Em miúda, filmes de princesas não me despertavam interesse e agora é difícil ficar sentada a ver a história de uma princesa que basicamente a única coisa que faz é dormir. Pobre Aurora, um alvo do meu feminismo cínico. Nestas histórias clássicas fica bastante claro como o mundo é estranho. Por exemplo, estripado do contexto vocês preferiam ser The Almighty Queen ou viver com sete tipos na mesma casa e depois casar com um pervertido? E realmente tentam nos convencer que não fazer nada é melhor do que ser uma bruxa badass com chifres e um ceptro e que casar com um Ken qualquer é melhor do que ter o poder de se transformar num dragão!
7. Vi um pouco dos casamentos de Santo António. A apresentadora ia dizendo que as noivas este ano estavam muito animadas (como estariam as do ano passado?) e que todo o mundo estava parado a ver o evento. Não posso falar por todo o mundo, mas eu estava até porque me encontrava numa sala de espera e não podia sair dali. Posso dizer que os vestidos eram bonitos - a apresentadora falou com tal entusiasmo de uma noiva que escolheu um vestido mais curto que dava a entender que a dita noiva ia adentrar a igreja de biquíni. Deve ser difícil encontrar o que dizer durante o dia todo, o que significa que coisas cringe vão com certeza ser proferidas.
Mas eu estava a ver de coração aberto, por exemplo achei fofo que uma noiva tenha ido até ao altar, se não me falha a memória, com o filho. E para que não se ache que só gente sem estudos acredita em velhas instituições andaram a perguntar às felizardas qual era a sua profissão e desencantaram uma advogada, uma médica e uma fotógrafa, ora toma! A média de idade dos casais era de 34 anos. Santo António tinha o poder da ubiquidade - enquanto elas iam entrando um senhor partilhava curiosidades com o espectador. Mas uma noiva disse que não estava nervosa e que tinha dormido 8 horas sólidas de sono e para mim isso é um poder superior à ubiquidade do Santo.
8. Aqui está uma notícia que encontrei - "Alemanha: um terço considera aceitável dar uma bofetada à namorada ou esposa. Uma percentagem semelhante (34%) dos homens inquiridos admite ter esbofeteado ou usado força física contra uma mulher numa disputa ou para "ganhar" o seu respeito". Estava na parte dos insólitos da M80, casualmente encaixada entre a notícia de uma cadela que salvou o dono da morte e...a notícia: "Homem simula rapto e tortura para reatar relação". Não diz se resultou.
9. Na verdade eu gosto de contos de fadas. Aprecio a estética e as muitas possibilidades de subversão. Agora que penso nisso há uma razão para escolherem ser uma princesa que só dorme: é se vocês estiverem na casa dos trinta já a caminhar para a meia idade. Compreende-se. Também estou ai. E há uma razão para escolherem ser a Branca de Neve: se estiverem a ponderar uma carreira bem sucedida no OnlyFans. No judgement.
- Não posso ser a única a ter ódio a este tempo húmido. Ter as roupas sempre coladas ao corpo, não conseguir dormir decentemente...Tenho morrido lentamente por estes dias ainda por cima em alguns deu em chover sem que com isso viesse qualquer alívio do abafado. Percebe-se que não nasci para climas tropicais pois só associo chuva ao frio e ao Outono. Que já devia cá estar.
- Tão mau como a humidade: ajuntamentos de pessoas que me fizeram fugir da Feira do Livro. Já não sei lidar com isso, não que soubesse antes mas...Não comprei nada. De um ponto de vista estritamente lógico talvez tenha sido melhor assim já que ando a ler bem devagar. Ainda bem que decidi que este seria o ano da não pressão literária, os números vão ser uma tristeza. Por outro lado as últimas três leituras tiveram cinco estrelas ou quase. Qualidade ganha à quantidade.
- Ouvi alguém dizer que as instituições mentais do século XIX foram uma extensão da caça às bruxas dos séculos anteriores. Só estava à procura de reviews da Met Gala no Youtube para ver os vestidos, mas acabei com esta ideia na cabeça. Não é mentira. As ideias são as mesmas só mudam de forma.
- Algo tão mau como humidade e os ajuntamentos: jogos cuja a premissa é investigar um mistério, geralmente em sítios como mansões ou hospitais abandonados que se revelam cheios de monstros que é preciso eliminar - e a personagem feminina está vestida com algo ridículo (e revelador) como um micro vestido. A agonia é real. É verdade que Hollywood faz a mesma coisa, por exemplo, colocando mulheres a fugir de dinossauros com saltos altos...
- É incrível ver como as personagens femininas continuam a ser julgadas com tanta severidade em comparação com as masculinas. As pessoas mais depressa simpatizam com um psicopata do que com uma mulher que é infeliz no seu casamento. Um caso paradigmático, de que já falei aqui antes, foi o de alguém que indicava Dolores [Lolita] como a personagem que mais detestava. Tenho novidades sobre isto: encontrei alguém a afirmar que não existe abuso nesta história...Também descobri que passado tanto tempo ainda há homens que acusam o The Color Purple de misandria - um grande disparate. Mas é preocupante que esta seja a primeira coisa em que eles pensem perante a história de uma rapariga negra pobre que é tratada como um lixo, abusada sexualmente pelo pai e depois pelo marido (e que encontra amor nos braços de outra mulher).
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