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Desabafos Agridoces

"Enfim, bonito e estranho, desconfio que bonito porque estranho"

Desabafos Agridoces

"Enfim, bonito e estranho, desconfio que bonito porque estranho"

Coisas engraçadas e ao mesmo tempo um tanto absurdas

1. A Cristina foi a segunda pessoa a chamar-me a atenção para um curioso fenómeno: livros eróticos com capas fofas. A primeira pessoa foi Leitora Júnior que nas suas explorações pelas livrarias desta vida pescou de um escaparate um livro cuja capa era uma ilustração aparentemente previsível e inofensiva que mostrava uma jovem ao lado de um jogador de hóquei, não sei o título, mas ao fim de cinco páginas já estava a acontecer gostosa fornicação. A questão aqui não é essa, mas sim a discrepância entre a capa e o conteúdo - se a capa tiver gente semi-nua já sabemos o que esperar. Isto é para a pessoa não ter vergonha ao carregar o livro em público...?

 

2. Num dos dias em que estava a voltar da FL, devia ser uma Quinta-Feira algures entre as nove e meia e as dez da noite, dei por mim de novo com a Rádio Amália sintonizada, mas em vez de fados com letras curiosas [este Sábado no programa da RTP dedicado ao assunto ouvi um que versava sobre a angústia de um indivíduo apaixonado pela vizinha de cima e às tantas: queria ser um rouxinol para cantar debaixo dos teus lençóis. Eh lá! Por esta marotice não esperava num casto serão], estava a dar uma rubrica em que se atendiam chamadas das pessoas - que podiam ligar para falar de qualquer coisa que quisessem. A minha atenção foi primeiro captada pelo facto de o locutor ter um tom seco que dava a entender que ele estava menos em Lisboa e mais num deserto no Arizona, os ouvintes pelo contrário eram bem castiços e não esmoreciam mesmo quando admoestados por não baixarem rapidamente o som. Uma senhora ligou para dizer que há imigração a mais, outra para falar mal do Costa. 

Menos polémica uma terceira não queria falar de política, queria apenas discorrer sobre o estado do tempo. Várias pessoas ligaram para mandar cumprimentos e beijinhos, uma senhora decidiu acrescentar que o seu vizinho também gosta muito de ouvir os fados - mal ela sabe que ele gosta é de ouvir a Orbital. Um profeta tinha coisas a dizer sobre o sistema prisional, nomeadamente porque é que os gandulos não são postos a construir estádios como antes. A dada altura foi dita a oblíqua frase - é que põem-nos lá dentro e depois põem-nos cá fora.

 

3. Encontrei isto perdido no mar de links e coisas guardadas - acho que vale a pena partilhar para todos podermos admirar a beleza comovente da poesia moderna...

 

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3. Há dias matei uma lesma. Não é que me orgulhe disso, mas têm de perceber: é uma criatura que me repugna...

Caracóis é sem problema, coloco-os na mão e levo-os lá para fora para viverem a sua vida em paz, mas as lesmas são um ranho que com desplante decidiu tornar-se senciente, não consigo lidar. As minhas opções eram chamar alguém ou resolver o assunto (ou simplesmente ignorar e fugir). Esmaguei aquilo com um misto de pena e nojo...Felizmente nunca ninguém achou que lesmas podiam ter potencial de terror. 

 

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5. Andei a dar uma volta pelos livros não físicos que tenho para ler. Como alguns títulos já não me diziam nada tive que fazer breves pesquisas por sinopses e opiniões, algo que se revelou mais divertido do que tinha pensado, especialmente quando as pesquisas incidiam sobre os títulos de temática feminista.

As pessoas podem ter as opiniões literárias que bem quiserem, mas por exemplo sobre um pequeno livro chamado Witches, Midwives, and Nurses: A History of Women Healers alguém escreveu - como a maioria das feministas, a autora é bastante previsível. Como não concordar? A partir de hoje não mais escreverei sobre temas de género, em vez disso vou escrever sobre cuidar de bonsais. Sobre o livro de memórias de Rebecca Solnit - Solnit é uma feminista radical e este livro prova-o. A review era positiva, mas não me lembro de ter lido nada da autora até agora que não me parecesse acertado. Talvez eu também seja uma feminista radical...Talvez não haja feminismo sem ser radical. 

Num título da Xinran um senhor escreveu - sou o único homem a ter lido este livro? Isto é apenas triste, embora não surpreendente. This wasn’t an angry feminist rant - dito sobre o livro de uma jornalista que nas suas viagens pelo mundo testemunhou as atrocidades cometidas contra as mulheres. Está na minha lista à espera que eu tenha de novo dezassete anos quando tinha estômago para ler tudo. Como é que se lê um título destes e aquela é a primeira linha que se escreve, não sei...

A propósito de um livro sobre a vida das mulheres na antiguidade clássica encontrei este comentário - o feminismo da autora brilha demasiado, não me permite ter confiança na sua objectividade. Fiquei a pensar nesta ideia das duas coisas serem incompatíveis, como se feminismo fosse algo meio indefinido da qual se começou a falar recentemente e não uma teoria política integrada num corpo de conhecimento que é ministrado em universidades. Querer ler sobre a história das mulheres mas sem nenhuma análise de género é um pouco bizarro...

 

6. Não tenho nada contra aqueles segmentos um bocado aleatórios nos telejornais - sobre esplanadas, castelos, negócios centenários...Outro dia apanhei um sobre ilhas paradisíacas, mas ao contrário do que se poderia esperar a peça nada tinha para ensinar sobre o sítio ou sobre os costumes e tradições das pessoas em vez de disso parecia ser apenas focado na vida dos ricos que se mudaram para ali.

Não sei quanto a vocês mas eu acho que nenhuma cascata ou vulcão se pode comparar a uma mansão sobranceira ao mar nem qualquer flora ou fauna é alguma coisa de interessante perante uma fileira de iates. Quem quer saber da comida local quando um tipo branco está animadamente a falar da abertura do seu luxuoso restaurante. Para ser justa, devo dizer que no último episódio que vi mostraram alguém a falar sobre excesso de turismo e consequências ambientais...Durante trinta segundos até a cena mudar para um campo de golfe. Não percebo porque é que quando gracejei de modo casual sobre estas pessoas poderem ser comidas, pode haver canibais naqueles sítios sabe-se lá, ninguém riu. 

A leitora envergonhada e outras reflexões

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(Este post ficou longuíssimo. Mas blog fez 14 anos em Julho por isso dane-se, vai como vai. A gerência agradece o patrocínio do sismo durante a escrita. Só faltou passar um cometa)

Como já contado aqui antes, não tenho conta no Goodreads em vez disso tomo nota daquilo que leio à mão em pequeninos cadernos - seria de esperar que alguém com uma péssima letra e pouca capacidade para tornar alguma coisa esteticamente apelativa escolheria um método diferente, mas não esta que vos escreve. Em tempos antigos e mais livres eu não tomava nota de nada, não via serventia em saber se a pessoa leu vinte ou sessenta títulos...E não é que tenha começado por competição, mas achei que analisar o que foi lido e conseguir formular uma opinião estruturada era uma boa competência para adquirir, até escrevi um post sobre as vantagens de ter um diário de leituras em papel.

Há quem faça o registo em excel. Não, obrigada. Acabei por ter de mudar para cadernos maiores - o que tinha para dizer afinal não cabia numa folha...Mas com tão poucas leituras nos últimos tempos, o registo foi abandonado e vários filmes e livros ficaram no limbo sendo que a maior parte são leituras feitas antes deste reading slump. Então agora estou numa missão: nada vai ficar por anotar. 

Acaba por ser um exercício de vergonha: porque é um pouco triste ter um registo de leitura e estar assim tão desactualizado, qual é o ponto? Porque devia estar a ler a um ritmo regular como qualquer leitora que se preze e porque ao passar os olhos pela lista vejo títulos que gostava de ter lido com mais atenção na altura...Olhando para o tamanho da dita lista este vai ser um longo exercício.

 

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(Reflectindo sobre arte esquisita)

De certeza que há pessoas que são produtivas nas suas insónias...Mas como não me apetece ler e com 105 anos de idade fico mal das costas se tentar ver algo no pc enquanto estou deitada, então ponho-me a pesquisar merdas aleatórias. Por exemplo, encontrei uns vídeos sobre história da arte - podem sempre contar comigo para falar de temas realmente palpitantes! 

Na verdade tudo começou com um vídeo que encontrei sobre o Manuscrito Voynich, o famoso livrinho do século XV presentemente a residir em Yale (mas disponível digitalizado online), autor anónimo e escrito num código até agora indecifrável. Há variadas teorias - há quem diga que talvez seja um guia de saúde pois contém desenhos de pessoas (todas as figuras são femininas) a dar banho um tema que não era incomum em livros da época, embora os rituais de higiene aqui sejam deveras peculiares envolvendo tubos e canos; também contém gráficos astrológicos e desenhos de plantas e raízes e o que talvez seja a descrição das suas propriedades embora nenhuma correspondência tenha sido encontrada no mundo real. A escrita parece ser uma língua funcional com algum tipo de lógica. 

 

B1.png(Tirado daqui)

 

Eu cá passei um tempo divertido a imaginar estes homens tão inteligentes ao longo das décadas a partir os miolos e no fim vai-se a ver e isto foi escrito por uma mulher sobre como aliviar as dores menstruais e fazer abortos. Quem sabe?

[Isto trouxe-me à memória o que li em tempos sobre a Escola de Medicina de Salerno que contava com um bom número de médicas que levaram a cabo estudos pioneiros, além das mulheres que trabalhavam como parteiras e curandeiras com conhecimento prático passado através de gerações. Infelizmente com o avançar do período medieval tornou-se quase impossível para elas praticarem medicina e isso podia levá-las à fogueira. Para conseguir empurrar as mulheres para a esfera doméstica em completa submissão era essencial privá-las dos seus direitos reprodutivos e por isso as que tinham este conhecimento eram um alvo preferencial durante a caça às bruxas.

 

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Por falar em linguagem também me lembrei do Nusho, um sistema de escrita desenvolvido e usado exclusivamente pelas mulheres da província de Huan, na china, para poderem comunicar livremente sem serem notadas. E aquela que se considera a mais antiga língua construída é atribuída a Hildegarda de Bingen - uma mulher de múltiplos talentos, poetisa, compositora, naturalista...E que tinha visões. Oliver Sacks dedicou-lhe um capítulo no seu livro The Man Who Mistook His Wife for a Hat]

Misteriosos códigos e livros perturbantes com sinais de que o Dia do Fim estava próximo e a tendência de desenhar pessoas a entrar dentro da boca de monstros, sem esquecer as ilustrações nas margens dos manuscritos com coelhos a decapitar humanos, freiras a apanhar falos das árvores, muita gente de rabo à mostra e cavaleiros a lutar contra caracóis, referências escatológicas e uma parada de todo o tipo de criaturas fantásticas - revelando um interessante senso de humor e imaginação. Como muitos desenhos mostram reis e clérigos em situações humilhantes talvez fosse uma maneira de gozar com quem estava acima na hierarquia. Talvez estas pessoas estivessem aborrecidas, terem de estar sentadas todo o dia a copiar o Eclesiastes, como nós nos aborrecemos no escritório à Quarta-Feira.

 

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(Reflectindo sobre mais arte esquisita)

Mas se falamos deste assunto não podemos passar à frente o nosso bom amigo Jerónimo em particular O Jardim das Delícias Terrenas. Sendo uma obra tão incrivelmente complexa não admira que haja tantas teorias sobre ela incluindo problemas mentais ou talvez alguém andasse a dar nas drogas...Talvez Bosch fosse um visionário pintando coisas que estavam para lá do seu tempo como os surrealistas iriam fazer mais tarde. Mas um documentário que encontrei oferece outra explicação - criada algures entre 1490 e 1510, os tempos eram convulsos. Novas terras a serem "descobertas", uma certa Lisa Gherardini iria tornar-se a face mais conhecida de toda a história da arte, afinal era o sol que estava no centro do cosmos e não a Terra, a inquisição vivia a sua melhor vida enquanto as mulheres nem por isso a virar cinza, houve a reforma e depois a contra reforma. Demónios eram vistos em toda a parte. 

É possível que Bosch tenha simplesmente pintado um reflexo da sociedade em que vivia. Quando fechado o tríptico mostra um monocromático da criação do mundo ao terceiro dia quando Deus separou as águas, então abre-se e temos esta explosão de cores e detalhes que mostra história da humanidade. Temos o passado, digamos assim, Deus está no centro a entregar Eva a Adão sendo que Adão está deitado na relva à direita do Criador. Claro que ele tinha de estar no lugar de honra enquanto é ela que fica com o lado pior, porque é a culpada de tudo e por isso as mulheres devem sofrer ao máximo. Nunca percebi: na Bíblia não diz que foram os dois punidos? De onde será que vêm estas ideias...

500 anos adiante alguém irá escrever que Deus é maneta da mão esquerda...A ideia anterior é reforçada no painel central onde num canto em baixo, aparece Adão a apontar o dedo a Eva que tem uma ball gag na boca - na verdade é uma daquelas coisas redondas que as pessoas comem na Igreja, mas é o que me fez lembrar até porque o significado daquela cena é bem evidente...Silêncio. Uma variedade de animais, uns mais familiares do que outros, compõem a cena. Perto das personagens há um lago de onde saem uns bichos feios, um sinal ominoso que já dá a entender que daí a nada vai tudo para o beleléu. 

 

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O presente com os seus prazeres passageiros e enganadores representado pela famosa bacanal com a sua pletora de homens e mulheres sem roupa em poses inusitadas, flertando alegremente enquanto devoram voluptuosas frutas com gusto. A cena está cheia de elementos com conotação sexual - a inteira obra está cheia de símbolos, aqui estão alguns: os mochos eram símbolo de cegueira espiritual e de trevas; toda a fruta aqui tem um óbvia conotação imoral, particularmente os morangos podem significar promiscuidade por terem muitas sementes, os patos eram considerados sujos e os sapos era um símbolo comum de heresia, vidros rachados e cascas de ovo vazias representam falta de fé.

Há pessoas negras misturadas com brancas e um grupo de homens que parece estar dedicado a práticas gays - relações sexuais sem a estrita intenção de produzir bebés. É a representação de um mundo fora da ordem natural: os humanos corrompendo o propósito divino de se multiplicarem.

E o futuro aterrador que resulta desta corrupção. Uma combinação de violência física, com as almas a serem decapitadas, trespassadas, empaladas, afogadas no gelo (na Divina Comédia o centro do inferno é gelado, os pecadores estão condenados a ficar imóveis), torturadas com instrumentos musicais...violência psicológica - com as almas a enlouquecerem também com o desespero e a ansiedade - e a humilhação extrema. Já é mau ser-se devorado inteiro pelo príncipe do inferno, mas depois ainda se é defecado num buraco onde outros já estão metidos no nojo. 

 

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(À direita: príncipe do inferno com cabeça de mocho. À esquerda: pássaro demónio com esquis, completo com uma frutinha a pender do ramo e o funil a servir de chapéu, As Tentações de Santo Antão)

 

Então a ideia do documentário é que não se trata de surrealismo mas era aquilo que para Bosch e para as pessoas à sua volta era a realidade. Penso que isto torna a obra ainda mais perturbadora - uma coisa é uma pintura com uma girafa com gavetas em chamas, não abrimos a porta de casa e esperemos ver realmente tal criatura, mas a angústia mental de acreditar que a força divina que vos colocou na terra e à qual vocês rezam por protecção e direcção é capaz de vos fazer coisas tão horrendas...Claro que estamos a falar de instituições mais preocupadas em ter poder e para isso o medo é a melhor arma, qual amor.

 

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(Reflectindo sobre a relevância da arte)

Outro documentário muito interessante que vi foi sobre Francisco de Goya, o famoso pintor espanhol. É mais alguém que cai no saco do - esta pessoa não estava bem mentalmente ou é drogas e estas teorias normalmente incidem sobre as Pinturas Negras feitas entre 1819 e 1823. Uma muito conhecida é Saturno devorando um filhobaseado no episódio da mitologia grega em que o titã Cronos destrona o seu pai e depois com medo que o mesmo lhe aconteça engole inteiros cinco dos seus seis filhos, excepto aqui o Deus está literalmente a devorar aos bocados o seu filho adulto com uma expressão alucinada.

Quem se lembraria de pintar uma coisa destas? Na verdade, Goya tinha uma confortável posição como pintor da corte em Madrid, pintava pessoas bem vestidas em festas e piqueniques, além de retratos da família real e cenas bíblicas - uma mulher de vestido azul e amarelo sentada com um guarda-sol, outra a andar num baloiço, uma cena das vindimas, um grupo de homens com um papagaio de papel...Ao mesmo tempo ele estava insatisfeito com o estado da sociedade onde a Igreja mantinha as pessoas ignorantes e presas a superstições e medos medievais, como o medo de bruxas e demónios.

 

B5.jpg(Witches' Sabbath, 1798)

 

Ao longo da vida ele trabalhou para três monarcas diferentes e o último era particularmente despótico então quando os franceses vieram existia a esperança de que os valores iluministas levassem a uma necessária reforma social e embora a inquisição tenha sido de facto abolida não demorou muito para o país estar mergulhado no caos - as execuções, a fome, as violações, os corpos mutilados...Goya registou tudo num conjunto de gravuras intitulado The Disasters of War (1810-1820). Colocando de lado conceitos de heroísmo e patriotismo para mostrar a realidade dos efeitos da guerra sob as pessoas desesperadas para tentar sobreviver, é quase um trabalho de foto-jornalismo.

Ele viu com os seus próprios olhos que a guerra é um inferno.

 

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("There is no one to help them")

 

No fim da guerra Espanha voltou a ser uma monarquia absoluta, a inquisição foi instaurada de novo (seria finalmente abolida em 1834, nós fizemos isso dez anos antes. Não é grande flex) e Goya velho e doente foi obrigado a deixar Madrid. Foi neste período que as pinturas negras vieram à existência - 14 obras grotescas, sem Deus nem esperança, feitas directamente no papel de parede da casa onde o mestre estava em completo isolamento. De novo: é mais fácil digerir a explicação que era alguém a ter uma crise psicótica, é como se isso criasse uma distancia confortável entre nós e os quadros, do que a ideia de que era alguém que estava profundamente desapontado com a humanidade.

 

B7.jpg(Witches' Sabbath orThe Great He-goat)

 

Agora, porque é que estou a escrever isto tudo? Admitindo, não é muito entusiasmante aprender sobre arte através de um manual de História com listas secas de características...Mas mesmo pinturas muito antigas podem ser relevantes hoje. O vídeo sugeria que Saturno Devorando um Filho possa ser sobre as coisas terríveis que os humanos são capazes de fazer para ganhar poder e para o manter.

Talvez seja isso que Goya nos esteja a tentar dizer: que devemos ter cuidado com aqueles que mal podem esperar para chegar ao poder e controlar a narrativa. E as consequências de deixar-mos a razão ser pisada por estas amálgamas de histeria, ignorância e informações falsas. The Disasters of War é ainda mais difícil de ver hoje em dia porque reflecte o nosso falhanço enquanto sociedade. Aqui estamos a ver continuamente coisas impossíveis de contemplar de tão horríveis, mas temos de continuar a viver como se fosse normal...

 

"Although these prints are (of course) products of a specific historical moment, there is a tragic immediacy in these images of suffering. I wish these prints only told us about the past — instead, they tell us too much about the present. I cannot look at them without immediately thinking of how much they share in common with photographs coming out of Palestine today.

Here, I want to remember the words of Rachel Carson: “Until we have the courage to recognise cruelty for what it is — whether the victim is human or animal — we cannot expect to be much better in this world”

(Tirado daqui)

 

Enquanto espero que alguém me leve ao Prado, falo como se ficasse nos antípodas, podemos pelo menos ver o original de As Tentações de Santo Antão no Museu de Arte Antiga - conta a história deste homem pio que vivia como ermita até o Diabo ter decidido infligir-lhe uma série de sofrimentos e armadilhas para o fazer pecar. Uma dessas armadilhas aparentemente foram mulheres peladas. Então na parte da direita da obra, no meio de todas aquelas criaturas bizarras e pessoas a voar montadas em peixes, temos uma cena familiar - uma mulher banha-se nua forçando o Santo a desviar o olhar. E esta pútrida prostituta convive no museu com as madonas amamentando o menino. Há tantas mulheres nestes quadros, mas há mesmo mulheres nestes quadros? É uma questão relevante.

É mais divertido pensar No Jardim das Delícias Terrenas como uma sátira com a parte do meio uma ode ao amor livre do que pensar que é um sermão sobre um mundo pecaminoso onde todas as coisas boas são enganadoras e vão levar à danação eterna. E isto fez-me pensar na quantidade de pessoas que dizem com toda a convicção que o mundo agora está ao contrário porque agora é tudo gay, e esta gente só vem para aqui estragar, e as mulheres já não sabem qual é o seu lugar...O mundo que está neste quadro é exactamente o mundo que esta gente deseja.

Temos de dividir a preocupação por tantas coisas - extrema-direita e estes estranhos grupos que parecem surgir do nada a interromper sessões de apresentação de livros, exércitos de Tate-wannabes. E por mais que se fale disto não deixa de surpreender como velhos métodos continuam a funcionar tão bem, o medo continua a ser a arma mais poderosa de controlo. Acreditar em demónios e bruxas, a mesma coisa só com outra roupagem. São grupos que predam o medo - receio de perder o emprego, que alguém faça mal aos seus - e distorcem esse medo usando-o para a sua vantagem. Quando mais caos melhor.

 

**********

(Partindo em direcção ao espaço)

A semana passada algo completamente diferente despertou a minha atenção. Cliquei num vídeo sobre um mar interior pré-histórico que existiu há cerca de trinta e quatro milhões de anos chamado Mar Interior Ocidental. Dividia os Estados Unidos, Canadá e México de alto a baixo, criando de cada lado dois continentes que já não existem. Tinha 970 quilómetros de largura e águas rasas com 900 metros na parte mais funda, era quente e tropical. Mas apesar de ser pequeno este mar albergava uma grande quantidade de criaturas muito vorazes e de excepcional tamanho - nem dava para molhar os pés, pois nas suas margens viviam os maiores crocodilos que já existiram. Por causa disto também tem o nome de aquário do inferno, parece de propósito. 

Quando eu era nova só era aceitável gostar de dinossauros se vocês fossem um rapaz de nove anos. E não posso dizer que tenha ficado interessada em decorar aqueles nomes todos mas fiquei em saber mais sobre os diferentes tempos geológicos que a terra viveu até esse questionável acontecimento que foi termos aparecido. Felizmente está tudo dividido em eras, períodos, etc. para ser mais fácil o nosso cérebro açambarcar. O problema disto é que depois comecei a pensar que se calhar devia ir ao início: mas como é que aparecem os planetas? E as estrelas como é que nascem? E as galáxias? Até criei uma pasta para guardar artigos sobre isto. Se calhar devia era tentar dormir.

Coisas que se dizem e que eu não percebo

- Se leio mais uma review que me diz que um filme não é para toda a gente não sei o que faço. Tenho a sensação inquietante que já devo ter escrito esta expressão, talvez até várias vezes - está sempre ali à mão para descrever um filme ou livro um bocado esquisito ou que não é mainstream. Mas agora isto anda-me a consumir: haverá algo que é para toda a gente? Como? Que merda quer isto dizer ao certo?

- Li algures, talvez tenha sido num blog quem sabe, que ver filmes em casa não é cinema. Fez-me rir porque parece uma reedição do antigo - comprar livros em supermercados que nojo da qual falei aqui há dez anos. Gente fina é outra coisa. Incrível é que mais de trinta pessoas comentaram o tal post onde falei disso. Bons tempos.

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- O Divino proteja o inocente coração das pessoas que se queixam que o feminismo no filme da Barbie é demasiado óbvio e na cara do espectador, porque elas nunca devem ter experimentado escrever a frase mais básica possível sobre igualdade de género nas redes e depois esperar para ver as reacções. Ontem enquanto comia o meu peixinho grelhado e via a notícia sobre desigualdade de salários [cuja existência é constantemente negada] ao mesmo tempo que logo por baixo no rodapé passava a notícia de uma mulher morta pelo companheiro com dois tiros de caçadeira, foi mesmo isso em que pensei - precisamos de falar de feminismo com mais subtileza. 

- Nunca se sabe onde as conversas vão parar, mas não estava à espera que esta fosse parar a futebol, assunto da qual não percebo uma caracoleta seja masculino ou feminino. Partilhei isso mesmo. Agora parem um segundo para imaginar a minha cara de enfado quando a pessoa começa a dizer que não aprecia futebol feminino, eu já à espera do clássico é porque tem menos qualidade. Mas o que saiu foi - o futebol é um desporto muito violento para mulheres. Pimba, vai buscar.

Há gente sortuda que nunca viu aquele vídeo horrível da ginasta que ao fazer um exercício no solo, caiu mal partindo de uma vez as duas pernas. O que parecendo que não consegue ser pior do que partir o nariz. E que nunca colocou os olhos em imagens de como ficam os pés das bailarinas, mas dizer que coisas como a ginástica ou o ballet são demasiado violentas para as senhoras faria o seu mundo ruir.

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- Não percebo quem se queixa que tudo hoje em dia é política, será que não se pode simplesmente ver algo e relaxar?  Eu cá cheguei à conclusão que na verdade tudo é político querendo ou não - o meu pipi é político. Porque será a primeira coisa que algumas pessoas quando ganham poder tentam controlar? Não importa se há pilhas de corpos nas ruas, passam por isso disso na sua obsessão pelo controlo do pipi. Até as coisas mais simples têm uma dimensão política, coisas como o pão ou a sardinha que nele se coloca, algo que o Google informa - "O hábito de comer a sardinha no pão, tão conhecida pelos portugueses, remete ao século XVII, em que as populações mais pobres esfregavam a sardinha no pão para lhe dar mais sabor e enganar a fome".

E assim é com os corpos humanos - corpos negros, corpos queer, corpos de imigrantes, os vivos e os mortos, estão sempre no centro da discussão política e a ser usados como armas de arremesso e dizer que chatice outra vez o mesmo assunto mostra um grande nível de privilégio - de certo modo todos fazemos isso, com a guerra, estamos fartos e desligamos a tv (embora às vezes seja mesmo preciso), mas escrever parem de fazer de tudo política quando há tanta gente que não se pode dar a esse luxo...

Nem sequer é apenas uma questão de controlo, mas da tentativa constante de obliterar esses corpos e enquanto se tecla, não podem estas putinhas se calar por um bocado [porque é que a palavra puta ainda é usada como palavrão é algo que me ultrapassa], há pessoas que tudo o que querem é poder respirar por mais 24 horas. Deve ser de onde vem esta coisa toda do woke, quando o desligamento dos problemas dos outros chega a um ponto que se passa a achar que esses outros é que são o problema ou que estão a inventá-los - e assim temos quem veja uma personagem gay na novela da noite e ache que aquilo é uma conspiração social para arruinar a sua serena noite.

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- Estava a pensar naquelas cenas em que a protagonista usa óculos e o seu par romântico tira-lhos da cara antes de dizer que ela é linda e que a ama muito. Mas que sentido faz isto? Aparentemente beleza e vista fraca são incompatíveis - quanto mais bonita vai ela ficar se por não ver for com o focinho ao chão? Numa rápida pesquisa encontrei vários artigos sobre como o cinema associa os óculos com ser feia e como para a protagonista ficar sexy tem de se livrar deles. Este ano troquei de óculos por uns cor de rosa e agora estou-me a sentir diminuída! E se não quiser usar lentes? As coisas que dizemos às raparigas para fazerem para agradarem a uma pila aleatória não conhece limites...

- Há uns anos andou a circular por aí um texto intitulado - You should date a girl who reads. Temos de admitir, nós pessoas que lemos adoramos estas coisinhas, porque ler é a melhor coisa do mundo e os livros são a melhor coisa do mundo e a sua importância é inegável - se as pessoas lessem mais livros talvez não acreditassem tanto em qualquer merda que vêem no Facebook - e encontrar-mos alguém que partilha esse gosto, melhor ainda.

Mas com o passar do tempo comecei a aperceber-me que se calhar era preciso fazer a distinção entre louvar a leitura e usar isso como arma de arremesso, como ilustrações mostrando várias raparigas maquilhadas todas iguais umas às outras tipo clones e depois uma no meio com um livro - a diferente. Pesquisando encontra-se uma variedade de listas - 12 Reasons To Date A Woman Who Reads15 Reasons Why Dating A Girl Who Reads Will Enhance Your Life19 Things Only People Dating A Girl Who Reads Would Know...Algumas coisas nestas listas são um bocado insanas (She's more intimate? She's low-maintenance? She's incredibly ambitious?)

A este ponto tratar as mulheres como hologramas é algo que me enfada deveras. Vão e façam o que quiserem: encham a cara de maquilhagem, comam uma pizza inteira, vejam filmes de ficção-científica, vão a festas, passem o dia inteiro a ler, joguem futebol, façam lindas peças em croché, cavalguem forte nessa pila se for isso que gostam, tirem um mestrado em filosofia antiga, decorem o carro inteiro em tons de rosa...O mundo teme uma mulher que contenha multitudes. 

Quem Escreve Aqui

Feminista * plus size * comenta uma variedade de assuntos e acha que tem gracinha * interesse particular em livros, História, doces e recentemente em filmes * talento: saber muitas músicas da Taylor Swift de cor * alergia ao pó e a fascistas * Blogger há mais de uma década * às vezes usa vernáculo * toda a gente é bem-vinda, menos se vierem aqui promover ódio e insultar, esses comentários serão eliminados * obrigada pela visita!

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