Últimas leituras e reflexões variadas
Decidi reler O Clube da Sorte e da Alegria de Amy Tan. Não posso dizer que teve cem por cento a magia da primeira leitura, mas seja como for é um livro da qual gosto muito. Nem sequer pestanejei quando li algures que esta obra, que fala de quatro mulheres que imigraram da China para os Estados Unidos e da relação com as suas filhas, contém misandria. Dizem o mesmo de A Cor Púrpura. Qualquer livro que não se foque em homens e que apresente personagens femininas com um pouco mais de vida que um esfregão é considerado um ataque. Dá muita vontade de rir.
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As insónias podem tirar anos de vida mas por outro lado aumentam a cultura geral. Particularmente gosto de pesquisar sobre personagens e criaturas mitológicas. Reparem: o meu cérebro é um bocado inútil, não sei desenhar nem fazer contas de cabeça, nunca consegui aprender a tocar a malfadada flauta, ele só funciona quando se fala em histórias - se pensarmos bem não foi saber fazer equações que salvou Sherazade. Acho fascinante como os mitos são\foram usados para explicar a natureza, a criação do mundo, a vida e a morte e como projecção de desejos e receios.
E assim acabei a ler este livro: The Book of Mythical Beasts and Magical Creatures. É mais direccionado para um público juvenil com uma página de texto para cada personagem ou criatura e dividido por capítulos: tricksters, creatures of deep, winged wonders, shapeshifters...Achei muito interessante e agradavelmente diverso (quem poderia adivinhar que também existem fadas na mitologia de algumas zonas de África? Nunca vi nenhuma fada, salvo seja, que não fosse branca), além de que as ilustrações são lindas.
No livro há referência a algumas deusas como Itzpapalotl da mitologia Asteca, representada como um esqueleto com asas de borboleta. Não consigo deixar de pensar nesta incrível imagem. Mas as figuras femininas nem sempre parecem muito apelativas: fantasmas vingativos, monstros que devoram homens ou o coração das almas pecadoras, espectros que anunciam a morte gritando muito alto, velhas bruxas que se deslocam num almofariz...
É também fascinante como alguns mitos se repetem em culturas tão díspares apenas com ligeiras variações - há uma tendência para atirar a culpa dos problemas para cima das mulheres: se Pandora tivesse contido a curiosidade os males não teriam saído, se Eva tivesse sido obediente eles não teriam sido punidos, na mitologia chinesa a Deusa da Lua era uma mulher que roubou o elixir da imortalidade do marido.
Uma coisa que fiquei a saber foi a origem da Medusa: uma bela mulher que foi violada (muitas vezes nestes casos aparece a expressão "a beleza de x atraiu..." o que tem muito que se lhe diga) no templo de Atena. Esta não gostou de ver o seu local sagrado conspurcado e puniu Medusa transformando-a num monstro. As suas duas irmãs, Esteno e Euríale, ficaram do seu lado e foram transformadas também, assim elas viraram as górgonas sendo que Medusa era a única que era mortal.
Fica para reflexão se continuamos a transformar mulheres, de vítimas em monstros e porque será que os artistas têm mostrado tanta predilecção por retratar uma Medusa grotesca e o victorioso herói a segurar na cabeça como troféu, mas nunca a outra parte da história.
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Mais recentemente terminei de ler um livro de contos de María Fernanda Ampuero, uma jornalista e premiada autora - e feminista - do Equador. Já tinha lido um conto dela há algum tempo atrás, mas esta colecção ultrapassou as expectativas. É composto por treze histórias curtas, mas bem fortes - ela não usa nenhum frufru para descrever a violência física e psicológica exercida sobre as mulheres e chega a ser agoniante. Tem sido um enorme prazer descobrir mais escritoras latinas, a minha lista de nomes continua a crescer.
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Voltando atrás às autoras africanas que fui lendo durante a volta ao mundo, tenho-me perguntado se fui injusta na atribuição das estrelas...No geral gostei de tudo o que li, mas haverá uma "parede" criada pela falta de hábito de ler livros que não sejam de autoras brancas? Infelizmente o ensino do Português deixa muitíssimo a desejar a este nível. Ou por achar que as personagens (femininas) deviam antes ter feito isto ou aquilo de acordo com a minha perspectiva branca e europeia. É preciso mesmo continuar a diversificar as leituras.
E diversificar as leituras não só em termos de cor: estou a pensar num modo de ler mais livros queer. O ano passado foram só três (todos óptimos) então pensei em ler um por mês - só de pensar nisto já estou a sentir a pressão, mas ainda assim já seleccionei alguns títulos e avancei com a ideia. Com o projecto da Austen é que não há avanço...oh well.