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Desabafos Agridoces

"Enfim, bonito e estranho, desconfio que bonito porque estranho"

Desabafos Agridoces

"Enfim, bonito e estranho, desconfio que bonito porque estranho"

RED

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(Red Flag, Judy Chicago. 1971)

 

Já terminei Period. End of Sentence. de Anita Diamant, uma colecção de ensaios que abordam o estigma da menstruação e a injustiça menstrual. Algumas partes são de dar a volta ao estômago e não é pela menção ao sangue, mas sim de ler como a vergonha desgasta a auto-estima das raparigas e lhes corta as oportunidades. Em países ditos desenvolvidos raparigas continuam a faltar à escola quando estão com o período, por exemplo nos Estados Unidos pessoas que dependem de ajudas do governo não podem usar esse benefício para comprar produtos para o período, itens que são pouco doados e que são muito caros também devido ao chamado tampon tax ("a value-added tax or sales tax charged on tampons and other feminine hygiene products while other products considered basic necessities are granted tax exemption status")

E que também não estão disponíveis gratuitamente em locais de trabalho e escolas. Num hospital de Wuhan, nos primeiros dias do Covid, o pessoal médico feminino ficou sem produtos para o período e quando os requisitaram aos seus supervisores o pedido foi negado com a resposta que elas deviam lidar com isso elas próprias...A história foi contada por uma enfermeira de vinte e um anos e resultou em centenas de doações - "Some hospital administrators turned away the donations, either unaware or dismissive of the need. Eventually, the supplies arrived, but not before the story was widely reported."

 

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(Foto de Rupi Kaur, tirada pela sua irmã em 2015 como parte de um projecto universitário. Foi removida duas vezes pelo Instagram, alegadamente por violar os termos da plataforma.

 "(...) I will not apologize for not feeding the ego and pride of misogynist society that will have my body in underwear but not be okay with a small leak when your pages are filled with countless photos/accounts where women (so many who are underage) are objectified, pornified and treated less than human.")

 

A vida já é difícil mas se além de não existir uma educação sexual adequada [pausa para falar da minha memória da única aula de educação sexual de que me lembro, nem sei como acabamos nessa aula e penso ter sido uma iniciativa de uma docente só. Ela tentou ensinar-nos a colocar um preservativo - não numa banana - e quando um colega quis impressionar a namorada com o seu conhecimento das partes da genitália feminina foi um desaire.

O que aprendem os jovens hoje em dia?] e acesso a produtos de higiene, também não existir acesso a cuidados de saúde, água corrente e privacidade, a menstruação torna-se um inferno para milhões de mulheres e meninas que são forçadas abandonar a escola e que chegam a tirar a própria vida com a vergonha de terem manchado a roupa. Em alguns lugares as mulheres não podem entrar nos templos ou sequer ficar na casa de família durante o período.

 

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(Lyla Freechild, ilustração feita com tinta e sangue menstrual. Encontrada aqui)

 

(Casey Jenkins, Casting Off My Womb)

 

O livro foi inspirado no documentário com o mesmo nome (e já vi e gostei muito - está disponível no Youtube) produzido pelo The Pad Project, uma ONG cuja missão é acabar com o estigma e emponderar pessoas que menstruam ao redor do mundo. O filme mostra as dificuldades que todos os meses enfrentam as mulheres de uma pequena aldeia indiana e como as coisas começam a mudar quando é ali instalada uma máquina que permite que elas próprias fabriquem pensos.

Há no livro ensaios focados na menstruação no contexto de trabalho, no contexto prisional, no impacto ambiental e no factor racial, entre outros. É uma luta que tem muitas frentes...A autora fala também de como algumas culturas celebram a primeira menstruação e de como algumas pessoas estão a criar as suas próprias celebrações além de dar muitos exemplos de activismo seja na arte, na comédia, na criação de novos produtos, em campanhas [depois de a direcção de uma escola ter recusado colocar tampões grátis nas casas de banho um grupo de alunas decidiu protestar fazendo bolachas em forma de tampõesem trinta anos só uma vez vi um dispensador e era a pagar.]

 

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(Carolee Schneemann’s  [1939-2019] Blood Work Diary, made during one of her periods in 1972, was created by drying blood on tissue paper with the help of egg yolk to keep the blood set in place. Schneemann’s inspiration for this work was partly homage and partly lament to the hypermasculinity of one of her former lovers (...) he once felt sick while they were having sex because he witnessed a drop of period blood. “The whole masculine trope is to blow up bodies and eviscerate them and pound them into the earth. The whole language of Vietnam was about pulverising bodies and then the contradiction of this modest amount of menstrual blood carrying this immense taboo”)

 

Também acabei Fruit of Knowledge: The Vulva vs. The Patriarchy da cartoonista sueca Liv Strömquist. Fui logo conquistada pelo primeiro segmento que fala de um grande problema - é que enquanto por um lado temos a sexualidade feminina coberta em vergonha e invisibilidade por outro temos homens que se preocupam excessivamente com o assunto, com funestas consequências e ela apresenta uma lista com vários exemplos [aqui está algo para pensar da próxima vez que comerem os famosos cereais de pequeno-almoço: o seu criador propôs que as senhoras colocassem fenol no clitóris. E este é só o primeiro nome da lista.]

 

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(Sarah Maple, Menstruate with Pride. 2010-11. Encontrado aqui)

 

A seguir vêm três segmentos, um fala da menstruação: porque será que os anúncios a produtos para o período sempre usam palavras como protecção, segurança e frescura? Quanto tempo de vida perdemos a tentar que ninguém note nada? No fundo tudo gira em torno disto: não é se vocês estão bem ou mal, mas se os outros, especialmente os homens, ficam a saber. E assim bolsinhas insuspeitas continuam a atravessar corredores...Não estará ultrapassado o conceito de que se queremos igualdade temos de fingir que nada se está a passar?

Outro sobre a misteriosa ausência da vulva na representação das figuras femininas e a confusão entre os termos vagina e vulva - um exemplo disso são as imagens de um homem e de uma mulher que a NASA mandou para o espaço em 1972 na sonda Pioneer. A figura masculina tinha um órgão genital mas a mulher não (o desenho inicialmente tinha uma linha indicando a vulva, mas essa versão não foi aprovada...) A subtracção das nossas partes externas e visíveis convenientemente reduz-nos a um mero buraco à espera de ser penetrado. E um segmento sobre a ausência também misteriosa de menções ao clitóris e de estudos sobre a sua anatomia e a maneira muito diferente como é descrito o prazer masculino e o prazer feminino.

 

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(Frances Cannon, Monsoon Season. Encontrada aqui)

 

Algo interessante é que a autora mostra como as pessoas que existiram antes de nós tinham ideias bem diferentes sobre estas coisas - elas não tinham problemas em esculpir vulvas! Ou seja muitas ideias misóginas que carregamos hoje e que muitos argumentam serem naturais e da biologia, são na verdade construções culturais recentes. Um livro informativo escrito com sentido de humor, só tenho pena que tanto um título como o outro não sejam maiores. Entretanto nota-se que tive um tempo bem passado a pesquisar sobre menstruação na arte.

Cantar o corpo em perigo

Dei por mim a lembrar-me disto: uma vez escrevi num texto que todos os homens são ensinados a odiar as mulheres e houve alguém que não gostou. Ainda acho isso. Mas não estou a sugerir que os vossos companheiros ou filhos estão apenas à espera de uma oportunidade para vos espetarem uma faca nas costas como nos Idos de Março. Estava a referir-me ao facto de crescerem rodeados pela ideia de que as mulheres são coisas sem grande valor: as raparigas são nojentas, falam muito, fazem coisas sem sentido, são instáveis, não têm força, nasceram para se adornarem e tomarem conta de bebés...

Um dos documentários que vi recentemente mostrava que apesar da escravidão ter sido abolida nos Estados Unidos, continuou a existir apenas metamorfoseada em outra coisa e quando essa coisa também deixou de ser aceitável metamorfoseou-se de novo. De certo modo acontece o mesmo com as mulheres. Se não é mais aceitável queimá-las vivas, ou fechá-las em hospitais psiquiátricos ou impedí-las de votar ou de entrarem para uma universidade ou de fazerem um aborto - qualquer outra coisa se vai arranjar: “Systems of oppression are durable, and they tend to reinvent themselves.” 

Muita gente acaba por ter a sensação de que avançamos pouco pois por cada avanço e cada direito conquistado (e não concedido) o contra ataque é enorme. É naive achar que estas ideias misóginas não se vão entranhar (o mesmo acontece com o racismo e a homofobia). Quando ando a pesquisar filmes nem sempre é imediatamente perceptível se a pessoa que realizou é uma mulher - porque não sei se o nome é masculino ou feminino ou o texto tem no início uma imagem do filme. E percebi que até essas pequenas imagens me estavam a activar os estereótipos de género interiorizados, sobre o tipo de filme que é suposto uma mulher e um homem realizarem. 

Mesmo que um tipo seja decente a crua realidade é que ainda assim estará a beneficiar deste sistema de desigualdade - do facto de ganharmos menos e sermos mais afectadas em alturas de crise, por exemplo. Esta realizadora não estará a competir com vocês por um Óscar porque ela foi destruída por homens menos decentes e abandonou a indústria, esta cientista não estará na lista de candidatos aos Prémios Nobel porque o ambiente era tão hostil que ela acabou por escolher outra carreira, esta mulher de negócios não chegará a ceo porque a pressão de conjugar trabalho, filhos e casa sem ajuda foi demais. Esta rapariga nunca chegará a ser médica ou artista porque foi humilhada na escola por estar com o período e cometeu suicídio - uma história real que terei do livro Period. End of Sentence de Anita Diamant, mas uma pesquisa rápida devolve vários casos semelhantes:

 

"According to media reports, the girl's mother said a teacher had called her "dirty" for soiling her uniform and ordered her to leave the class. In Kenya, many girls cannot afford sanitary products such as pads and tampons and – despite the passage of a law in 2017 to provide free sanitary towels for schoolgirls – the girl had nothing to protect her clothes. She came home and told her mother about the incident but when the mother went to fetch water, she took her own life.

(...)

Access to menstrual products is a huge problem across sub-Saharan Africa, where an inability to afford sanitary products prompts many girls to avoid school during their periods. A 2014 Unesco report estimated that one in 10 girls miss school during menstruation, which means they miss out on 20% of their schooling each year"

(Tirado daqui e daqui)

 

Livro que também fala de mulheres que morreram por terem de ficar em lugares sem condições enquanto estavam menstruadas, pois não lhes é permitido estar em casa com a família, e de raparigas em países "civilizados" que também faltam às aulas por não terem dinheiro para comprar produtos de higiene (ou porque têm tantas dores que não se conseguem levantar da cama. Muitas vezes os médicos desprezam as queixas das mulheres - um estudo revela: "Women 32% more likely to die after operation by male surgeon"

O corpo feminino é um corpo em perigo constante. Outro dia encontrei uma lista de filmes e séries que mostram personagens femininas de um modo misógino\hiper-sexualizado. Tinha os suspeitos do costume incluindo séries que são: rape/torture porn for the male gaze. E isto fez-me pensar que é um bocado contraditório - por um lado a concordância de que as mulheres merecem respeito. Somos iguais. A violação é um crime. E por outro o tempo dispensado a ver séries onde mulheres são violadas constantemente. Penso: é isso excitante? É um bom entretenimento? É apelativa a ideia de dobrar qualquer mulher que apeteça? Mas continuaria a ser excitante se no lugar delas estivessem eles ou seria desconfortável? 

Aquilo que somos capazes de normalizar é impressionante. E as coisas não existem no vácuo, a ideia de ter a violação como entretenimento integrada na cultura popular é horripilante - uma manifestação de puro ódio (e uma arma de guerra, não nos esqueçamos). Um corpo destruído é um corpo que não consegue mais erguer a sua voz, especialmente quando as pessoas se recusam a acreditar. 1001 formas não de cozinhar bacalhau mas de destruir uma mulher [o patriarcado também mata homens, paradoxalmente]

"The opposite of rape is understanding", diz um poema. Não é só o corpo feminino, mas também os corpos não brancos e queer que estão sempre em perigo. A questão da empatia ficou de novo a burilar no meu espírito: empatia é ouvir uma vítima de violação; não é apenas entender um não dito de forma directa mas entender quando a outra pessoa está desconfortável - e não ter de a forçar a inventar desculpas para não ter que fazer sexo (btw aqui está outro dado: apenas cerca de 30% das mulheres têm um orgasmo provocado pela penetração - há muita preguiça e muitas mulheres não estão a receber o que merecem...); talvez seja comprar uma caixa de pensos para a outra pessoa e não exigir que fiquem escondidos fora da vista; talvez seja menos passar aulas a dissecar sapos e mais a aprender anatomia feminina.

Talvez seja deixar uma aluna ir à casa de banho durante um exame, calando alguém na fila atrás que protestou ao ver isso. Não é ver na televisão tantas pessoas a fugirem de conflitos e pobreza ao longo dos anos e só agora ocorrer ao pensamento que essas mulheres vão precisar de pensos, tampões ou panos limpos: uma manifestação de privilégio da minha parte. Só que não é conveniente ensinar isto aos rapazes, não vão eles abandonar a ideia de que têm de dominar e controlar a todo o custo. E assim se inventaram coisas como: os homens não conseguem ser empáticos porque vieram de Marte...Tenho a certeza que esse planeta vermelho nada tem que ver. Precisamos de mais produtos onde não sejamos desumanizadas. O corpo livre é um conceito revolucionário, séries inteiras poderiam ser escritas sobre ele.

O olhar dos homens e o corpo das mulheres

Há uns tempos li um livro, que já devo ter mencionado aqui, é um daqueles que reúnem biografias de várias personagens femininas mas neste caso só de artistas: Broad strokes: 15 women who made art and made history (in that order) de Bridget Quinn. Fala de pintoras e escultoras desde o barroco até artistas contemporâneas que exploram diferentes tipos de meios, os textos estão bem escritos e são ilustrados com imagens das obras. Dada a impossibilidade de falar aqui de cada uma destas mulheres incríveis, este post concentra-se num detalhe: as ocasiões em que a autora sugere que comparemos certa obra com outra semelhante de um artista.

 

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Em cima: Judith Beheading Holofernes, Caravaggio, 1599. Galeria Nacional de Arte Antiga, Roma.

Em baixo: Judith Slaying Holofernes, Artemisia Gentileschi, 1620. Uffizi Gallery, Florença.

(Para uma análise de género entre estes dois quadros recomendo este artigo,

a diferença de perspectiva é impressionante)

 

Como feminista, a visão patriarcal sob as mulheres é um tema recorrente. Não é de espantar: uma vez que vocês começam a reparar neste olho não há volta a dar, ele está em todo o lado. Como expliquei em outros posts, é uma das razões porque decidi ler mais escritoras - o olhar que eu consumia era maioritariamente masculino. Não foi tão fácil como parece: podiam tentar arrancar os meus autores preferidos das minhas mãos frias e mortas, afinal eles ensinaram-me o que era boa literatura, fizeram-me chorar apenas com uma descrição de um quarto. Como vou abrir mão deles? Mas eles também me fizeram ver as mulheres pelos seus olhos - ou nem considerá-las sequer (Moby Dick é um exemplo clássico de obra sem mulheres, mas considerada literatura universal). Mas são estes os livros que são considerados essenciais.

 

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Em cima: The Artist’s Studio, Gustave Courbet, 1855. Museu de Orsay, Paris.

Em baixo: Self-Portrait with Two Pupils, Mademoiselle Marie Gabrielle Capet (1761-1818) and
Mademoiselle Carreaux de Rosemond (died 1788); Adélaïde Labille-Guiard, 1785. Metropolitan Museum of Art, Nova York.

[Em contraste com a vulnerável figura nua, o quadro de Labille-Guiard mostra uma relação de protecção entre as três mulheres: as duas estudantes, com roupa menos vistosa, estão posicionadas atrás da cadeira da pintora, ambas inclinadas na sua direcção, as cabeças encostadas e têm os braços à volta uma da outra]

 

A visão dos homens é que define que literatura é válida ou não - mais tarde haveria de perceber que o patriarcado tem diversas técnicas para impedir a produção artística das mulheres e para impedir que elas façam parte do cânone. Este olhar no cinema é brutal: são pilhas de corpos femininos predados até à exaustão. Tão normal é o olhar masculino nos filmes que nem paramos para pensar porque é que a personagem feminina está nua numa cena aleatória, porque está naquela pose, porque está o foco apontado para aquela parte do corpo dela, compactuamos com o olho que vê a mulher despida no chuveiro.

Quando vemos um filme (ou quadro ou livro) em que este olhar patriarcal foi afastado é uma catarse. A minha experiência ao ler autoras fez-me saltar por cima das listas tradicionais de melhores filmes e sem nenhum arrependimento. Ao escrever este texto veio-me logo à mente o Portrait of a Lady on Fire: uma visão queer que altera as relações patriarcais de poder, como a relação entre quem observa e quem é observado. A dada altura há uma cena de aborto, que em si mesma daria um post pelo modo transgressivo como é retratada. Depois disso uma das personagens sugere que recriem a cena para que outra, que é artista, a possa pintar.

Ao fazer isto elas reconhecem a importância do que aconteceu - e que é algo que merece ser contado. Talvez eu não tenha ido a museus que chegue mas não me parece que o aborto seja um tema popular, o que é irónico tendo em conta a quantidade de vaginas que estão à vista.

 

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Em cima: Henry Ford Hospital (La cama volando), Frida Kahlo, 1932. Museu Dolores Olmedo, Cidade do México.

Em baixo: Sem título Nº1 (Série Aborto), Paula Rego, 1998.

 

Outro filme que me veio logo à mente foi a comédia Booksmart, especialmente a cena em que as duas protagonistas se estão a arranjar para a noite das suas vidas: seria simples fazê-las meter uns vestidos sexy e siga, mas o mundo é perigoso para as mulheres e elas sabem isso então a preparação envolve treinar movimentos de auto-defesa com a ajuda de vídeos do Youtube e ter à mão o spray pimenta (que acidentalmente uma esperge para a cara da outra), além disso elas falam de masturbação e a cena íntima entre uma das protagonistas e outra rapariga é realística.

O olho patriarcal afecta profundamente o modo como as mulheres se percepcionam a si mesmas: como obsessivamente controlam a sua aparência, os seus gestos, o modo como se sentam, o que dizem (ou não dizem), o tom da voz...Vi recentemente The Love Witch, que também encaixa bem aqui, pois é uma interessante apropriação de um género bastante masculino (filmes sensacionalistas dos anos 60\70), transformado numa reflexão feminista: a bela protagonista está determinada a encontrar o homem da sua vida e por isso faz tudo para ser aquilo que eles mais desejam - a sua última fantasia como ela própria diz. 

As mulheres também acabam por adoptar um olhar masculino, avaliando-se umas às outras por essa bitola. Fiquei a pensar nisto depois de ler o livro Moda e Feminismos em Portugal de Cristina L. Duarte, uma tese que analisa os modos como estes dois temas se entrecruzam. Mulheres de várias gerações são entrevistadas, uma rapariga diz: "À minha minha desagrada-lhe muito que eu tenha pelos, é o seu olhar masculino. O meu irmão, que está cheio de pelos, não é um problema (...) o mesmo critério não é aplicado a ele."

 

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Esquerda: Timocleia Before Alexander,  gravura de Léon Davent a partir de frescos de francesco Primaticcio, 1541-1545 [ver maior]

Direita: Timoclea Kills the Captain of Alexander the Great,  Elisabetta Sirani, 1659 [ver maior]

 

Outra coisa que não tinha pensado: a própria posição em que as mulheres são retratadas mostra a sua falta de estatuto. Um ser etéreo que inspira o artista (ou o poeta) na realização da sua obra-prima e se não for isso o que é que lhe resta? Ser a figura trágica - isto fez-me lembrar o quadro de Sirani, que já tinha inserido num outro texto, mas achei interessante o contraste entre as duas peças. Ela mostra Timoclea atirando o seu violador para dentro de um poço, enquanto a maior parte das pinturas que retratam este episódio a mostram depois disso, diante de Alexandre, o Grande (e assim a história é desviada da figura feminina).

Se a mulher não estiver ajoelhada, como a pobre Inês, então é a puta, reclinada, oferecida - Judite era uma figura piedosa representando a justiça mas foi transformada num objecto sexual - é um modo de destituir a figura feminina de poder, submetendo-a a figuras masculinas superiores que decidirão o seu destino ou as usarão para a sua satisfação. É um duplo consumo em que está envolvido quem produz a obra e quem a contempla.

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Esquerda: Drama de Inês de Castro, Columbano Bordalo Pinheiro,1901-1904, Museu Militar de Lisboa [ver maior]

Direita: Olympia, Édouard Manet, 1863, Museu de Orsay, Paris [ver maior]

["The female nude had long been a staple in the repertoires of male painters, from Italian Renaissance artists to key figures in nineteenth-century French painting. Around the beginning of the twentieth century in particular, modernists like Pablo Picasso and Henri Matisse revamped the female nude for the sake of artistic experimentation (...) Their sitters were made sexually available, even defenseless; they were designed for a male viewer and his desire." - tirado daqui]

 

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Paula Modersohn-Becker: Reclining Mother and Child II, 1906 e Reclining Female Nude, 1905-1906 [ver maior]

[Paula foi a primeira artista na História ocidental a pintar um auto-retrato nu. E muito provavelmente uma das primeiras a retratar outras mulheres deste modo, seguindo a tradição do nu reclinado ao mesmo tempo que o libertava da carga erótica masculina. A mãe, grande e com os pelos púbicos expostos, e o(a) bebé olham-se indiferentes a quem observa - "They do offer sensuality, but it’s one of food and touch and warmth and animal love. For each other" - quebra também a imagem da sofrida virgem que amamenta um inevitável menino.]

 

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Paula Modersohn-Becker: Self-Portrait with Amber Necklace II, 1906.

 

Incorporamos este olhar com tanta facilidade - sofremos com a violência patriarcal e simultaneamente somos ensinadas a reproduzi-la. Estas galerias cheias de santas e putas, listas de livros só com nomes de autores e a sucessão interminável de películas (e sagas) tão clichés e falocêntricas...Tudo isto constitui uma fábrica de desejos masculinos mostrando aos espectadores o tipo de homem que eles devem almejar ser, o tipo de homem a "sério" em que se podem projectar e por arrasto mostram como eles devem olhar e tratar as mulheres - quem pode negar que os valorosos marinheiros mereciam foder à tripa forra com as ninfas? Sê um herói e no fim ficas com o troféu. E para se manter a ilusão de superioridade, as mulheres nestes quadros devem permanecer como estão: passivas.

Quão triste isto é, para todos...Não me interessa debater sobre se há uma escrita feminina ou não, tenho lido tantas coisas diferentes. O ponto é: a importância de reconhecer a existência de uma visão masculina, branca e heterossexual que é predominante, os efeitos disso, como podemos identificá-la (felizmente hoje em dia já se encontram muitos artigos que explicam o fenómeno da male gaze e como identificar isso no cinema, por exemplo) e procurar outras vozes, as histórias que estão na priferia e que precisam de ser trazidas para o centro.

Quem Escreve Aqui

Feminista * plus size * comenta uma variedade de assuntos e acha que tem graça * interesse particular em livros, História, doces e recentemente em filmes * talento: saber muitas músicas da Taylor Swift de cor * Blogger há uma década * às vezes usa vernáculo * toda a gente é bem-vinda, menos se vierem aqui promover ódio, esses comentários serão eliminados * obrigada pela visita

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