Encontrei uma lista da BBC - The 100 greatest films directed by women, achei bastante interessante embora não consiga parar de imaginar um incauto ou incauta a escolher o Triunfo da Vontade para uma sessão de cinema num domingo à tarde...Depois constatei que dos cem este foi o único que vi, um bocado deprimente. A minha cultura cinematográfica não é grande coisa e fiquei a pensar em alargar o desafio de ler autoras pelo mundo de modo a incluir alguns filmes feitos por mulheres, de países onde ainda não "estive". Why not...Já tenho alguns numa pasta, encontrei no Youtube.
Os dias de Elisa Esposito (Sally Hawkins) são feitos das mesmas rotinas: acordar sozinha no seu apartamento, arranjar-se para o trabalho como empregada de limpeza num laboratório de segurança máxima em Baltimore e no fim fazer o mesmo trajecto de volta a casa. As únicas pessoas a quebrar o seu isolamento são um artista gay chamado Giles (Richard Jenkins) e Zelda (Octavia Spencer), uma outra empregada de limpeza. É quando um dia trazem para o laboratório uma estranha criatura humanóide anfíbia (Doug Jones) que as coisas mudam e o mais improvável acontece...Elisa e a criatura encontram o caminho para o coração um do outro.
A Forma da Água é uma espécie de conto de fadas para adultos sobre solidão e amor. Os humanos são seres gregários como sabemos e o desejo de ter alguém advém naturalmente, só que é algo que pode não ser fácil de encontrar...Então acabamos por levar não necessariamente um vida triste, mas solitária no nosso pequeno mundo privado. Para algumas pessoas isso, por experiências passadas que deixaram marcas ou por imposições da sociedade, pode ser um desejo ainda mais difícil de satisfazer. Quando Elisa olha para o monstro não vê aquilo que os separa e que pode parecer muito: vê outro ser que tal como ela foi maltratado e está só. E pela primeira vez aquilo que a afasta das outras pessoas não tem importância - ela não fala, ele também não. Encontram maneira de desenvolver uma ligação por meio de pequenas coisas sem precisarem de verbalizar. O amor pode ter todo o tipo de formas. E é este sentimento mais do que qualquer outro que nos dá a força para fazer o que é certo.
Isto contrasta com o ambiente social e político em que a história está inserida e que não deve ter sido escolhido por acaso: o início da década de 60. Não tardamos a perceber que não é só o "experimento" preso no tanque que está em perigo, mas todos os que tiveram o azar de nascer com características "erradas". Giles, Zelda ou Elisa...todos por um motivo ou por outro estão à margem da sociedade e não podem esperar dela tolerância ou misericórdia especialmente quando se decidem rebelar contra o que ela diz que é "correto", contra as leis que definem o seu lugar, o seu direito de poder falar e o que deve ser amado e o que não...há tanta gente condenada ao silêncio neste mundo que quando vemos Elisa mandar uma pessoa muito mais poderosa do que ela fazer uma certa coisa, por exemplo, é difícil não pensar no simbolismo desse gesto. Nesse sentido o vilão (Michael Shannon) torna-se credível e ainda mais assustador. Cidadãos respeitáveis com famílias modelo são as engrenagens de sociedades assim. A doçura das cenas entre Elisa e a sua criatura contrasta com o ódio e a paranóia e os papeis invertem-se: o que parece grotesco aqui não é esta relação. É o que está à volta.
Outro detalhe é a importância que é atribuída à personagem feminina. Tristemente a norma ainda é ter personagens femininas que são apêndices: muito bonitos, mas fáceis de remover da narrativa. Mas neste caso a história não tem como funcionar sem Elisa: se ela não tomasse a decisão de se aproximar (ignorando claramente a tradicional ideia de que se deve ter medo do desconhecido e ficar longe), o resto nunca chegaria a acontecer. Ou seja: a história não lhe acontece a ela, mas acontece por causa dela. Além disso ela é corajosa e assertiva: uma mulher com uma missão, não uma princesa bem comportada e passiva. E uma mulher com necessidades como qualquer ser humano, incluindo necessidades sexuais. É um componente importante e que podia ser problemático, mas que é tratado com toda a naturalidade. Claro que isto também funciona porque Sally é deveras maravilhosa e encaixa que nem uma luva no papel. O facto de não falar não é problema porque conseguimos ver tudo na sua postura e na sua face muito expressiva.
Esteticamente falando é um filme muito bonito: o incauto espectador é logo de imediato submergido num ambiente dreamlike, potenciado pelas belíssimas cores e cenários cheios de coisinhas retro e de detalhes, com aquela vibe nostálgica especial dos velhos filmes da época dourada. A banda sonora é uma pérola e complementa perfeitamente a história. A Forma da Água faz deste modo um já bem necessário upgrade às narrativas clássicas que envolvem pessoas e monstros, servindo-o num pacote ricamente decorado e com o interior cheio de doçura e sensibilidade, numa altura do mundo em que parece tão fácil deixar o coração ficar frio...
Com realização e argumento de Christopher Nolan, Dunkirk é a primeira adaptação para o grande ecrã da operação Dínamo: de 26 de Maio a 4 de Junho de 1940 perto de 340 mil soldados, especialmente ingleses, foram salvos das praias de Dunquerque onde tinham sido encurralados pelas tropas alemãs. Exaustos e sem nenhuma saída, nada mais restava a estes homens do que esperar pela morte. Mas o que começou por ser uma desastrosa derrota terminou como um milagre para qual contribuiu a coragem de centenas de civis que usando os seus próprios barcos levaram o máximo de homens que conseguiram até Dover, mesmo debaixo de intenso bombardeamento.
Vamos já tirar isto do caminho: Dunkirk não é um drama de guerra típico. Não tem personagens principais - não sabemos nada sobre estes homens (na verdade, uma boa parte deles não passam de crianças) e nem vamos ficar a saber. Só mesmo o que está à vista: que eles estão muito cansados e que querem muito ir para casa. Nada de conversas do tipo: "este sou eu e este é o meu amigo que conheci não sei onde e agora olhem para esta foto da minha adorável esposa que está em casa à espera". Em vez de se focar na história de b ou c o filme foca-se em dar uma perspectiva mais ampla do acontecido e por isso o enredo também não é linear e não segue uma ordem cronológica. Em vez de uma única perspectiva tem três que se alternam e encaixam - a perspectiva dos civis, dos aviadores que têm de proteger as tropas e das próprias que estão em terra.
Também não vamos ficar a saber muito mais sobre como é que eles acabaram naquela situação: quase não há contexto e quase não há diálogos. É cru, directo e tem um tom sombrio que é dado não apenas pelas bombas que caem com frequência, mas pelas próprias expressões daqueles soldados que denunciam logo nas primeiras cenas um intenso sofrimento psicológico, além do físico. Num momento estão a tentar ajudar-se e no outro estão a espezinhar-se que nem bichos. Uma luta pela sobrevivência em condições extremas para a qual o espectador é atirado logo sem nenhuma preparação prévia. O casting é esforçado e convincente ainda que havendo três linhas narrativas e não uma única, o tempo de antena para cada personagem seja um pouco reduzido. E tem de ser dito: depois de tanta gente a panicar porque o Harry ia estragar o filme, afinal ele não está nada mal.
Visualmente é um filme primoroso - os planos da praia e da cidade abandonada dão uma sensação de isolamento e as cenas dentro dos navios ou em fila à espera deles são sufocantes. Ao contrário do que talvez fosse esperado o filme não acaba na altura do resgate mas sim já em Inglaterra - vemos grupos de homens a andar como zombies por uma linha férrea o que é daquelas imagens que não precisa de nenhuma explicação adicional. Há várias assim ao longo do filme. Tende-se a considerar que os custos de um conflito, sejam passados ou presentes, residem apenas no número de mortos passando por alto o efeito que isso tem nos sobreviventes...Como eles se pudessem simplesmente encaixar de novo numa vida normal. O contraste entre as cores verdes e vibrantes dos campos ingleses e as cores das cenas anteriores na praia sempre cinzentas e frias é belo e triste ao mesmo tempo. Gostei bastante e recomendo, especialmente se vocês tiverem um fraco por temas destes.
Feminista * plus size * comenta uma variedade de assuntos e acha que tem graça * interesse particular em livros, História, doces e recentemente em filmes * talento: saber muitas músicas da Taylor Swift de cor * Blogger há uma década * às vezes usa vernáculo * toda a gente é bem-vinda, menos se vierem aqui promover ódio, esses comentários serão eliminados * obrigada pela visita
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