Ó mar, quanto do teu sal são lágrimas racistas
(E outras considerações)
(ilustração tirada daqui)
1. Todos nós já vimos controvérsias ridículas na internet e eu achava que não podíamos ir mais longe do que a história do ananás na pizza - coloquem o que quiserem no raio da pizza, não interessa. Mas a controvérsia que se gerou sobre a cor da nova Ariel é de uma absurdidade atroz. Tentei não ligar mas quando o Youtube me começou a recomendar vídeos de uma hora que pareciam consistir em pessoas a arrancar cabelos por causa disto percebi que não há salvação. Porque na prática estamos a discutir exactidão num filme de animação sobre uma criatura mitológica que é metade mulher metade peixe. Será que o filme tem uma vilã que é mesmo roxa e sapateiras verdadeiras a dançar e a cantar? Não me parece. Tecnicamente então a Ariel não devia ser metade mulher metade pássaro?
(Ilustração tirada daqui)
2. Alguém pode dizer que é desnecessário entrar em detalhes mitológicos sobre mermaids e sirens porque a base do filme é o conto de Hans Christian Andersen que foi publicado em 1837. Se algumas pessoas se deram ao trabalho de ir pescar o conto original eu decidi também me dar a esse trabalho - que é como quem diz dei três cliques no Google. Numa versão em pdf diz: "a sua pele era clara e delicada como a pétala de uma rosa e os seus olhos azuis como o mar mais profundo mas tal como as outras ela não tinha pés (...)", mas numa versão online diz - "Her skin was as soft and tender as a rose petal, and her eyes were as blue as the deep sea, but like all the others she had no feet". O que parece ser consensual é que ela era a mais bonita das seis filhas do Rei dos Mares. Não vejo menção a cabelos ruivos, apenas que eram longos e espessos (Alice de Alice no País das Maravilhas não era loura. Fun fact) e o final é diferente. Desta mudança em relação ao original nunca vi ninguém queixar-se.
(Ilustração de Domien Delforge, tirada daqui)
3. E é importante mencionar que as sereias não foram inventadas nem pela Disney, nem por Christian Andersen nem sequer pelos gregos. Histórias de sereias têm sido contadas por milénios ao redor do globo incluindo em África e também em muitos países do Caribe.
"Mermaids, of course, don’t belong to one region. The earliest fish-women emerged in southwestern Asia’s ancient Mesopotamia, said Sarah Peverley, a cultural historian at the University of Liverpool in England. But almost every culture has a version of a mermaid,” she said. “They come in all shapes, sizes and skin color.”
"Water spirits abound in African stories. Water was the thin veil that separated the spirit from the real world, and those who could conquer water were believed to have strong powers"
[um outro artigo que encontrei menciona que as primeiras histórias de sereias terão surgido na Assíria 1000 anos antes de Cristo, quando a deusa Atargatis envergonhada por ter morto acidentalmente um humano se atirou a um lago. As águas não puderam esconder a sua beleza e ela foi transformada numa sereia. Os gregos associavam Atargatis a Afrodite que se diz ter nascido da espuma do mar]
"Mermaids have a long and enduring presence across the globe in literature, myth and spiritual beliefs (...) Black mermaids, notably the gender-fluid Mami Wata, have an important presence in African folklore; aquatic goddesses and spirits also exist in various forms in myths and legends across Asia".
(Retirado daqui)
"Mami Wata is a water spirit worshiped across West, Central, and Southern Africa. Mami Wata is known to heal the sick and bring good luck to her followers, but she is said to have a temper and will drown those who do not obey her (...) She possesses many forms, often appearing with the head and torso of a woman and the tail of a fish or as a snake charmer"
(Retirado daqui)
Na Wikipédia no final do artigo sobre Mami Wata podemos encontrar uma tabela com o nome de sereias\espíritos aquáticos presentes na mitologia de variados países como Angola (Kianda, a deusa banto das águas), Haiti, Benim, Zimbabwe (espíritos da água chamados Njuzu na mitologia do povo Shona), Guiana, Guiné, Jamaica (uma sereia que se acredita habitar em rios, River Mumma); África do sul - na cosmologia do povo Zulu encontramos Inkosazana, uma deidade associada com a agricultura e fertilidade e que é percepcionada como uma sereia.
Sereias podem ser sedutoras e enganadoras mas também podem ser ferozes protectoras como Maman de l'Eau um ser das lendas de Trindade e Tobago, metade mulher metade serpente, que pune quem cometa crimes contra a natureza. E podem também ser excepcionais guerreiras como Iara, uma sereia que se diz habitar no rio Amazonas. Algumas versões contam que a sua bravura e beleza despertou a inveja dos irmãos que a mataram e atiraram ao rio, outras dizem que ela soube do plano e que matou os irmãos sendo atirada ao rio como castigo. Foi salva por peixes ou pela deusa da Lua (Jaci) ao transformar-se numa sereia. Aborígenes australianos têm na sua mitologia histórias de sereias.
(Ilustração tirada da página do autor)
O problema não é a actriz ser negra. O problema é o foco em histórias eurocêntricas que estreitam a nossa visão: crescemos com pouquíssima representatividade e a pensar que qualquer personagem é branca por defeito. Mas não temos os direitos exclusivos de um mito.
4. E quando há representação nem sequer temos tempo de sentir algum contentamento porque como evitar a armadilha de discutir com pessoas que nem se dão ao trabalho de fazer uma pesquisa de minutos antes de vomitar ácido. Mesmo que o conto descreva a sereia como branca, não podemos esquecer o contexto - quando falamos de escritos situados numa época de ideias sociais e biológicas extremamente racistas e imperialismo colonial.
Ironicamente se pesquisassem um pouco não eram só sereias negras que iriam descobrir mas também que Hans Christian Andersen era queer e muitos estudiosos olham para A Pequena Sereia como uma alegoria para frustração pessoal do escritor - o facto de o príncipe casar com uma humana, com alguém "apropriado", enquanto a sereia se transforma em espuma reflecte o que aconteceu quando ele viu o homem que amava casar com uma mulher (uma coincidência: Howard Ashman que trabalhou na história e na música de vários sucessos da Disney incluindo A Pequena Sereia era gay e criou Ursula inspirado numa extravagante drag queen chamada Divine), em outras palavras é a história de um coração gay em sofrimento - que se sente fora do lugar num mundo heterossexual.
"He imagined a world deep beneath the sea, where a mermaid, seeking someone from another world—a human prince—finds herself rejected by him, even after she saves his life and, later, desiring that he see her as beautiful, convinces a sea-witch to give her legs. Nothing works. Unlike Walt Disney’s later, softer adaptation of “The Little Mermaid,” Andersen wrote an ending filled with pathos, where his mermaid, left alone and unloved, “dissolves” into seafoam (...) Indeed, like the ugly duckling, the little mermaid imagines something is ineradicably wrong with her (...)"
5. Chegados este ponto vale recordar que ainda estamos a falar de um filme de animação sobre uma criatura não real...Cuja cor altera zero por cento da história. E tendo em conta que o Árctico pode ficar sem gelo em 2030 não sei até que ponto podemos afirmar que esta questão ameace tanto o mundo a ponto de se criarem hashtags como fazer a Ariel branca outra vez.
6. Tempo de inserir uma nota pessoal: vi o filme original há uns tempos. Não gostei assim muito. Em miúda, filmes de princesas não me despertavam interesse e agora é difícil ficar sentada a ver a história de uma princesa que basicamente a única coisa que faz é dormir. Pobre Aurora, um alvo do meu feminismo cínico. Nestas histórias clássicas fica bastante claro como o mundo é estranho. Por exemplo, estripado do contexto vocês preferiam ser The Almighty Queen ou viver com sete tipos na mesma casa e depois casar com um pervertido? E realmente tentam nos convencer que não fazer nada é melhor do que ser uma bruxa badass com chifres e um ceptro e que casar com um Ken qualquer é melhor do que ter o poder de se transformar num dragão!
7. Vi um pouco dos casamentos de Santo António. A apresentadora ia dizendo que as noivas este ano estavam muito animadas (como estariam as do ano passado?) e que todo o mundo estava parado a ver o evento. Não posso falar por todo o mundo, mas eu estava até porque me encontrava numa sala de espera e não podia sair dali. Posso dizer que os vestidos eram bonitos - a apresentadora falou com tal entusiasmo de uma noiva que escolheu um vestido mais curto que dava a entender que a dita noiva ia adentrar a igreja de biquíni. Deve ser difícil encontrar o que dizer durante o dia todo, o que significa que coisas cringe vão com certeza ser proferidas.
Mas eu estava a ver de coração aberto, por exemplo achei fofo que uma noiva tenha ido até ao altar, se não me falha a memória, com o filho. E para que não se ache que só gente sem estudos acredita em velhas instituições andaram a perguntar às felizardas qual era a sua profissão e desencantaram uma advogada, uma médica e uma fotógrafa, ora toma! A média de idade dos casais era de 34 anos. Santo António tinha o poder da ubiquidade - enquanto elas iam entrando um senhor partilhava curiosidades com o espectador. Mas uma noiva disse que não estava nervosa e que tinha dormido 8 horas sólidas de sono e para mim isso é um poder superior à ubiquidade do Santo.
8. Aqui está uma notícia que encontrei - "Alemanha: um terço considera aceitável dar uma bofetada à namorada ou esposa. Uma percentagem semelhante (34%) dos homens inquiridos admite ter esbofeteado ou usado força física contra uma mulher numa disputa ou para "ganhar" o seu respeito". Estava na parte dos insólitos da M80, casualmente encaixada entre a notícia de uma cadela que salvou o dono da morte e...a notícia: "Homem simula rapto e tortura para reatar relação". Não diz se resultou.
9. Na verdade eu gosto de contos de fadas. Aprecio a estética e as muitas possibilidades de subversão. Agora que penso nisso há uma razão para escolherem ser uma princesa que só dorme: é se vocês estiverem na casa dos trinta já a caminhar para a meia idade. Compreende-se. Também estou ai. E há uma razão para escolherem ser a Branca de Neve: se estiverem a ponderar uma carreira bem sucedida no OnlyFans. No judgement.