Leituras de Março
Lidos
[Falei de livros ao longo do mês, ok. Não dá para evitar, mas estes três foram passados por alto e seria uma pena não mencionar aqui estas mulheres intrépidas]
I Know Why the Caged Bird Sings (1969): é o primeiro de sete livros autobiográficos de Maya Angelou. Compreende o período da sua infância, desde os três anos quando foi deixada à guarda da sua avó paterna numa cidadezinha rural no Arkansas. De uma forma bem vívida ela mostra como era opressiva a vida dos negros ali, com poucas ou nenhumas perspectivas, e quão profunda era a segregação. Um dentista recusou-se a tratá-la, apesar das dores evidentes, porque nunca na vida iria meter a mão na boca de um negro, uma mulher para quem ela trabalhou como criada insistia em chamar-lhe Mary porque o verdadeiro nome de Maya [Marguerite] era muito longo e dava muito trabalho dizê-lo...
"People in Stamps used to say that the whites in our town were so prejudiced that a Negro couldn’t buy vanilla ice cream. Except on July Fourth. Other days he had to be satisfied with chocolate."
O livro compreende também o período da adolescência, terminando em São Francisco quando Maya tem 17 anos. A sua resiliência serve de inspiração para todas as meninas negras que procuram o seu caminho e a sua identidade no meio do fogo cruzado da misoginia e do racismo.
"The Black female is assaulted in her tender years by all those common forces of nature at the same time that she is caught in the tripartite crossfire of masculine prejudice, white illogical hate and Black lack of power."
Ten Days in a Mad-House (1887): quando tinha apenas 23 anos a repórter Nellie bly decidiu investigar como eram tratados os insanos em Nova York. Circulavam rumores acerca das condições de um dos locais mais notórios da cidade - o hospício na ilha Blackwell. A única maneira de descobrir a verdade era entrar. Como paciente. Sob uma falsa identidade Nellie fez-se passar por louca, conseguiu enganar médicos e ser admitida lá dentro. E a verdade revelou-se arrepiante.
“Tell me, are you a woman of the town?
I do not understand you, I replied, heartily disgusted with him.
I mean have you allowed the men to provide for you and keep you?
I felt like slapping him in the face (...)"
Um livro que não serve apenas de documento histórico sobre como as mulheres eram tratadas nestes lugares, mas que também nos lembra a importância do jornalismo de investigação e nos faz pensar: como é que nós, pessoas informadas do século XXI, encaramos a doença mental? Quantas coisas acontecem a outros seres humanos mesmo debaixo do nosso nariz e nem paramos para pensar?
"I have watched patients stand and gaze longingly toward the city they in all likelihood will never enter again. It means liberty and life; it seems so near, and yet heaven is not further from hell."
How to Suppress Women's Writing (1983): neste livro, a conhecida autora de ficção-científica, Joanna Russ, analisa e desconstrói as tácticas que a sociedade patriarcal usa para suprimir e descredibilizar a produção literária e artística das mulheres.
Falta de tempo, de independência financeira, de encorajamento, pressão social para ocupar os papéis tradicionais...São alguns dos obstáculos no caminho das mulheres que ambicionam escrever. Claro que há as que conseguem saltar por cima disso tudo, dirão vocês. Então, o que acontece a seguir?
She didn’t write it
[é evidente que foi um homem]
She wrote it, all right—but she shouldn’t have
[é patético, é imoral, é inveja do pénis, quem a vai amar agora?]
"Of Jane Eyre “many critics bluntly admitted that they thought
the book was a masterpiece if written by a man, shocking or disgusting if written by a woman.”
She wrote it, but look what she wrote about
[a experiência dela é limitada, não tem importância, valor...]
She wrote it, but "she” isn’t really an artist and "it" isn’t really
serious, of the right genre—i.e., really art
[ela é uma puta, uma solteirona maluca, uma fufa...E isto é literatura de segunda]
E quando uma escritora produz literatura "séria" e consegue entrar para o cânone? O que fazer? Dar a entender que ela apareceu do nada. Ignorar a relação dela com a tradição literária precedente, com outras pessoas do seu tempo (como outras escritoras) e fontes de influência. Uma anormalidade que só produziu uma única obra ou um mero punhado de poemas...Assim ela, embora apareça nas listas de "livros importantes", parece não encaixar (logo também não vai servir de modelo para ninguém). São sempre as mesmas (poucas) com os mesmos títulos a aparecer nessas listas não é?
Cada capítulo está escrito com clareza e sentido de humor. Com variados exemplos, alguns a autora tirou da sua própria experiência. Um verdadeiro abrir de olhos e que veio ao encontro de dúvidas que me surgiram quando comecei a ler mais autoras.
Para leituras futuras
The Female Man (da Joanna); This Bridge Called My Back: Writings by Radical Women of Color; Tell me a Riddle, contos de Tillie Olsen (que está editado em português), Les Guérillères e ensaios de Monique Wittig; Life in the Iron Mills, Rebecca Harding Davis; o que falta das irmãs Brontë...
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Eu Matei Xerazade - Confissões de Uma Mulher Árabe em Fúria, Joumana Haddad