Género: invisível
Um dos últimos livros que li foi o Miniaturista. É um óptimo livro por várias razões entre elas o facto de ter personagens femininas bem construidas e relevantes para a narrativa. Uma delas, chamada Marin, é uma mulher perseverante e inteligente que poderia conduzir exércitos. Mas nascida na Europa no século XVII o máximo que ela pode conduzir é a si mesma e aos criados até à igreja mais próxima. É frustrante pensar em quantas mulheres assim existiram na História - tão dotadas, mas impedidas de ter o futuro que mereciam morreram no anonimato. Se lerem livros sobre as guerras (as grandes ou as pequenas) vão perceber que é tudo um grande desperdício: miúdos de 18 anos que podiam estar a estudar para médicos ou para engenheiros em vez de ficarem a apodrecer na lama. É um facto.
O que têm feito com as mulheres até hoje: um desperdício. Uma castração mental com resultados devastadores. Por exemplo, estima-se que no mundo 16 milhões de meninas entre os 6 e os 11 anos nunca irão à escola. Alguns dirão que é por sermos biologicamente menos inteligentes. Gostaria de ganhar um 1 euro por cada pessoa que diz que o facto de "haver poucas mulheres na História" é culpa nossa. Vamos fazer como a Virginia [Woolf] e supor que Shakespeare tinha uma prima chamada Judite e que ela tinha talento para as letras. Conseguiria ela fazer o mesmo percurso que o primo? Não me parece. Todas as tentativas de apagar os feitos de qualquer pessoa que não homens [essencialmente brancos] ao longo do tempo - todos os prémios que deviam ter sido atribuídos e não foram, todas as pesquisas que nunca foram devidamente acreditadas, todos os obituários que passaram em branco...
Outro motivo porque gostei do Miniaturista é porque as personagens femininas criam uma ligação entre si e trabalham juntas para atingir objectivos comuns - não há suficientes livros ou filmes que mostrem isto. Livros ditos para jovens então é para esquecer. Mas se forem à procura de coisas que versem sobre a amizade masculina o mais certo é ficarem soterrados. Decidi ler a seguir o Mundo Perdido [The Lost World; Conan Doyle; 1912] que é sobre 4 senhores que vão para a Amazónia à procura de dinossauros. Pode ser um livro muito divertido ou muito deprimente dependendo de como o lêem, mas o que interessa para aqui é que eles criam uma ligação entre si especialmente os dois cavalheiros mais moços. É claro: qualquer relação de amizade ou outra se tende a fortalecer nas dificuldades. Vocês também vão encontrar isto em muitos livros de guerra por óbvias razões. Mas todas as experiências que ultrapassam a porta de casa nos foram negadas: casa de família, casa do marido, cemitério. E era tudo. "O mundo está cheio de possibilidades de heroísmo"- é verdade caro Arthur. Muito em especial para quem sempre foi livre de as procurar. Andar em aventuras nas terras do Prestes João sem ter a pressão de casar ou tendo alguém para ficar em casa a mudar os cueiros às crias...Séculos de progresso foram feitos sacrificando as mulheres - física e mentalmente.
E sem que isso tenha sido valorizado. Também há uma grande discrepância no modo como se avaliam as experiências: três senhores a lutar contra índios na selva é épico, duas senhoras a tentar fazer o parto de uma terceira num quarto é mesquinho. O que terá de interessante uma conversa entre uma mãe e uma filha na Amesterdão do século XVII ou a conversa de duas vizinhas durante o blitz? Esta desvalorização é grave porque faz com que se tenha uma visão enviesada e incompleta do mundo.