Coisas que se dizem e que eu não percebo
- Se leio mais uma review que me diz que um filme não é para toda a gente não sei o que faço. Tenho a sensação inquietante que já devo ter escrito esta expressão, talvez até várias vezes - está sempre ali à mão para descrever um filme ou livro um bocado esquisito ou que não é mainstream. Mas agora isto anda-me a consumir: haverá algo que é para toda a gente? Como? Que merda quer isto dizer ao certo?
- Li algures, talvez tenha sido num blog quem sabe, que ver filmes em casa não é cinema. Fez-me rir porque parece uma reedição do antigo - comprar livros em supermercados que nojo da qual falei aqui há dez anos. Gente fina é outra coisa. Incrível é que mais de trinta pessoas comentaram o tal post onde falei disso. Bons tempos.
- O Divino proteja o inocente coração das pessoas que se queixam que o feminismo no filme da Barbie é demasiado óbvio e na cara do espectador, porque elas nunca devem ter experimentado escrever a frase mais básica possível sobre igualdade de género nas redes e depois esperar para ver as reacções. Ontem enquanto comia o meu peixinho grelhado e via a notícia sobre desigualdade de salários [cuja existência é constantemente negada] ao mesmo tempo que logo por baixo no rodapé passava a notícia de uma mulher morta pelo companheiro com dois tiros de caçadeira, foi mesmo isso em que pensei - precisamos de falar de feminismo com mais subtileza.
- Nunca se sabe onde as conversas vão parar, mas não estava à espera que esta fosse parar a futebol, assunto da qual não percebo uma caracoleta seja masculino ou feminino. Partilhei isso mesmo. Agora parem um segundo para imaginar a minha cara de enfado quando a pessoa começa a dizer que não aprecia futebol feminino, eu já à espera do clássico é porque tem menos qualidade. Mas o que saiu foi - o futebol é um desporto muito violento para mulheres. Pimba, vai buscar.
Há gente sortuda que nunca viu aquele vídeo horrível da ginasta que ao fazer um exercício no solo, caiu mal partindo de uma vez as duas pernas. O que parecendo que não consegue ser pior do que partir o nariz. E que nunca colocou os olhos em imagens de como ficam os pés das bailarinas, mas dizer que coisas como a ginástica ou o ballet são demasiado violentas para as senhoras faria o seu mundo ruir.
- Não percebo quem se queixa que tudo hoje em dia é política, será que não se pode simplesmente ver algo e relaxar? Eu cá cheguei à conclusão que na verdade tudo é político querendo ou não - o meu pipi é político. Porque será a primeira coisa que algumas pessoas quando ganham poder tentam controlar? Não importa se há pilhas de corpos nas ruas, passam por isso disso na sua obsessão pelo controlo do pipi. Até as coisas mais simples têm uma dimensão política, coisas como o pão ou a sardinha que nele se coloca, algo que o Google informa - "O hábito de comer a sardinha no pão, tão conhecida pelos portugueses, remete ao século XVII, em que as populações mais pobres esfregavam a sardinha no pão para lhe dar mais sabor e enganar a fome".
E assim é com os corpos humanos - corpos negros, corpos queer, corpos de imigrantes, os vivos e os mortos, estão sempre no centro da discussão política e a ser usados como armas de arremesso e dizer que chatice outra vez o mesmo assunto mostra um grande nível de privilégio - de certo modo todos fazemos isso, com a guerra, estamos fartos e desligamos a tv (embora às vezes seja mesmo preciso), mas escrever parem de fazer de tudo política quando há tanta gente que não se pode dar a esse luxo...
Nem sequer é apenas uma questão de controlo, mas da tentativa constante de obliterar esses corpos e enquanto se tecla, não podem estas putinhas se calar por um bocado [porque é que a palavra puta ainda é usada como palavrão é algo que me ultrapassa], há pessoas que tudo o que querem é poder respirar por mais 24 horas. Deve ser de onde vem esta coisa toda do woke, quando o desligamento dos problemas dos outros chega a um ponto que se passa a achar que esses outros é que são o problema ou que estão a inventá-los - e assim temos quem veja uma personagem gay na novela da noite e ache que aquilo é uma conspiração social para arruinar a sua serena noite.
- Estava a pensar naquelas cenas em que a protagonista usa óculos e o seu par romântico tira-lhos da cara antes de dizer que ela é linda e que a ama muito. Mas que sentido faz isto? Aparentemente beleza e vista fraca são incompatíveis - quanto mais bonita vai ela ficar se por não ver for com o focinho ao chão? Numa rápida pesquisa encontrei vários artigos sobre como o cinema associa os óculos com ser feia e como para a protagonista ficar sexy tem de se livrar deles. Este ano troquei de óculos por uns cor de rosa e agora estou-me a sentir diminuída! E se não quiser usar lentes? As coisas que dizemos às raparigas para fazerem para agradarem a uma pila aleatória não conhece limites...
- Há uns anos andou a circular por aí um texto intitulado - You should date a girl who reads. Temos de admitir, nós pessoas que lemos adoramos estas coisinhas, porque ler é a melhor coisa do mundo e os livros são a melhor coisa do mundo e a sua importância é inegável - se as pessoas lessem mais livros talvez não acreditassem tanto em qualquer merda que vêem no Facebook - e encontrar-mos alguém que partilha esse gosto, melhor ainda.
Mas com o passar do tempo comecei a aperceber-me que se calhar era preciso fazer a distinção entre louvar a leitura e usar isso como arma de arremesso, como ilustrações mostrando várias raparigas maquilhadas todas iguais umas às outras tipo clones e depois uma no meio com um livro - a diferente. Pesquisando encontra-se uma variedade de listas - 12 Reasons To Date A Woman Who Reads; 15 Reasons Why Dating A Girl Who Reads Will Enhance Your Life; 19 Things Only People Dating A Girl Who Reads Would Know...Algumas coisas nestas listas são um bocado insanas (She's more intimate? She's low-maintenance? She's incredibly ambitious?)
A este ponto tratar as mulheres como hologramas é algo que me enfada deveras. Vão e façam o que quiserem: encham a cara de maquilhagem, comam uma pizza inteira, vejam filmes de ficção-científica, vão a festas, passem o dia inteiro a ler, joguem futebol, façam lindas peças em croché, cavalguem forte nessa pila se for isso que gostam, tirem um mestrado em filosofia antiga, decorem o carro inteiro em tons de rosa...O mundo teme uma mulher que contenha multitudes.