Coisas em cima do teu pescoço
E outras violências
Agora que já ficámos a conhecer o desfecho do caso de George Floyd (aparentemente número de anos semelhante para o assassino de Bruno Candé) - dá muito em que pensar e algo que me ocorre é que a justiça que tanto se apregoa que é para todos, é uma espécie de unicórnio para não brancos, minorias e em muitos casos também mulheres: é improvável que alguma vez a vejamos e quando isso acontece esfregamos os olhos em descrença. É por isso que quem disse que estávamos a ser ridículas(os) por celebrarmos a prisão de uma certa figura de Hollywood uma vez que esta já se apresentava fisicamente debilitada, falhou completamente em entender o ponto.
Entretanto algumas forças policiais não receberam a nota e mataram uma pessoa cigana da mesma forma, que fetiche será este com pescoços, já sabemos que Sarah Everard foi também violada e um Militar da GNR foi multado por exibir o pénis a uma mulher que passava na rua em Sintra. Esta quase dá para rir e fazer uma piada marota (mas antes de a fazerem vale a pena lembrar que o polícia que violou e matou Sarah tinha sido reportado dias antes por exposição indecente). Pelo menos na América começa a existir maior consciencialização para o facto de que estamos a lidar com algo mais profundo e sistémico e não com apenas umas poucas maçãs podres.
Mas estará a acontecer o mesmo aqui? Dá-me a sensação que há pouco interesse em falar de violência policial sistémica especialmente com motivações racistas, pois quando acontecem os casos são abafados com conversas paralelas, desculpas e posições defensivas (o mesmo aconteceu quando se tentou falar dos monumentos como promotores de ideais coloniais e o fosso entre o número de notícias sobre demolições de bairros ilegais e o número de debates sobre a desigualdade habitacional é sem surpresa enorme). O cenário parece um tanto inquietante, de acordo com uma breve pesquisa pelos termos violência policial em Portugal.
Uma notícia do ano passado dá conta que há seis queixas por semana contra polícias, já uma outra de 2018 fala da infiltração da extrema-direita na PSP. O livro de Joana Gorjão Henriques Racismo no País dos Brancos Costumes também fala sobre isto:
"Os profissionais pior classificados na Escola da Polícia acabam em esquadras como as da Amadora e de Sintra, zonas para onde ninguém quer ir - precisamente porque ««há pretos»», conta um agente, que pediu para se manter anónimo. ««Na escola ouve-se que aquelas zonas são mais perigosas. E uma pessoa com medo é perigosa, reage.»» As descrições que faz são bastante gráficas (...) Parece dar razão às suspeitas de infiltração da extrema-direita nas forças policiais: há ««razias aos bairros»» programadas ««só porque sim»». ««Aquilo é visto como o território do inimigo.»»"
Ser contra o racismo e a xenofobia pode valer sanções, como tivemos a oportunidade de ver recentemente.
"Há elementos das várias forças de segurança que exteriorizam as suas ideias racistas e xenófobas, usam tatuagens e simbologias "neonazis", pertencem a grupos assumidamente racistas, isto é do conhecimento de todos e infelizmente as organizações nada fazem para expurgar estes "tumores do seio das forças de segurança."
(Tirado daqui)
Uma outra notícia do ano passado diz o seguinte:
"O Comité Anti-Tortura (CPT) do Conselho da Europa recomendou (...) às autoridades portuguesas a adoção de medidas firmes para prevenir maus-tratos policiais e garantir que os alegados casos sejam investigados de forma eficaz (...) Os alegados maus-tratos em causa consistiram sobretudo em agressões com chapadas, socos e pontapés no corpo e na cabeça, bem como espancamentos com cassetetes e ocorreram no momento de detenção, bem como durante o período de permanência na esquadra da polícia (...) os afrodescendentes, tanto portugueses como estrangeiros, parecem correr maior risco de maus tratos em meio policial"
Uma coisa que tenho vindo a notar é a frequência com que casos de violência doméstica envolvem polícias\militares. Isto também é perturbador. A violência doméstica em si já é chocante, mas se uma mulher sofre violência e\ou abuso sexual, se dirige a uma esquadra e encontra um agente que faz exactamente a mesma coisa e depois vai a tribunal e o juiz que também faz a mesma coisa...Onde fica a justiça? Não existe, porque o sistema é corrupto e está viciado.
Não estou a dar uma de Sid Vicious, péssima referência neste contexto na verdade, mas a dizer que precisamos de pensar seriamente no tipo de pessoas que estão a ingressar nas nossas instituições - no que permite que elas continuem lá apesar do seu comportamento - e se estamos confortáveis com a ideia de estas instituições oprimirem os mais vulneráveis.