O direito ao horrível, livros a mais, influencers
- Não comprar livros por um ano inteiro parece-me um projecto demasiado ambicioso. Devia tentar e até agora não comprei nenhum, mas não tarda está aí a FL...Acho que o conteúdo que ando a ver sobre consumo excessivo está a começar a surtir um certo efeito...Estes vídeos onde alguém analisa\comenta trends das redes, coisas que as I༙྇n༙྇f༙྇l༙྇u༙྇e༙྇n༙྇c༙྇e༙྇r༙྇s༙྇ andam a fazer ou outros tópicos relevantes parecem ser populares e eu vejo porque é sempre refrescante ouvir pessoas com dois dedos de testa e porque gosto de estar a par do que acontece em sítios onde jamais abrirei uma conta. Aqueles que falam de consumo exagerado podem incidir sobre maquilhagem, produtos de higiene, decoração, comida - uns vídeos em que a pessoa compra grandes quantidades de produtos alimentares e bebidas, tira tudo das embalagens e coloca em recipientes que depois são esteticamente arrumados no frigorífico.
É tão estúpido que só de escrever isto sinto que dois neurónios meus entraram em depressão - não posso dizer que tenha o desejo de encher uma divisão da casa com cremes...Mas no que toca aos livros a tolerância é maior: "nunca se tem livros a mais", "ler faz bem, mais vale do que gastar dinheiro em coisas superficiais" ou uma que uso muito - "mas são em segunda mão!" E para quem valoriza o livro e tudo o que representa pode ser difícil aceitar que este se torne um objecto de consumo rápido, para mostrar num vídeo durante um minuto e depois mandar para a pilha e que nós somos crianças de três anos que queremos a coisa nova e brilhante, seja o que for.
Os hauls são um problema, aqueles sacos parecem não ter fundo - mal consigo descrever o nível de irritação que me causa ver os tubos a serem espremidos para a câmara, desperdiçando produto e o som das unhas a bater nas embalagens. E ao mesmo tempo temos "leitores" a mostrar os seus cinquenta livros novos...Digo leitores entre aspas porque estas pessoas lêem realmente? Não quero esmorecer os que dizem que a leitura está na moda, mas considerando que há quem admita que só lê os diálogos ("Now BookTokers say they skip reading 'big paragraphs' in books and 'only read the dialogue") e que vi alguém abrir para câmara um livro perfeitamente normal, não era uma edição de bolso, e a queixar-se que tinha demasiadas palavras...Pode ser mais um sinal do anti-intelectualismo destes tempos, o gosto não é pela leitura é só pela estética.
- Vocês gastam dinheiro no que quiserem mas está para lá de mim entender a obsessão por certas coisas. Como certas garrafas de água, claro - não é lindo quando o capitalismo se apodera de uma ideia que devia ser usada em favor do planeta? É a minha coisa preferida! Como não saio muito só há pouco tempo vi uma ao vivo e achei tão feia e sem jeito como parecia online. E é mesmo preciso ter dez ou vinte com respectivos acessórios? Outra é mais específica, aqueles bonequinhos que são uns bebés sem roupa de olhar maroto, vêm naquelas caixas mistério em que não sabemos qual nos vai calhar e cada colecção tem um tema. Os funkos já são de um nível de beleza questionável, mas se visse fileiras inteiras destes bebés na casa de alguém acho que saia a correr.
(Tirado do Pinterest)
- Como já disse algumas vezes aqui, sublinho e escrevo nos meus livros. Há um certo prazer em folhear o livro mais tarde e ver as anotações todas, mas claro que demorei cinco minutos a encontrar quem faça as anotações mais perfeitas, a letra direita e clara, post-its, marcadores - uma cor diferente para cada tópico...Pelo menos é sinal que a pessoa tirou mesmo tempo para ler, quem sabe, mas agora tenho pena ao olhar para as minhas notinhas tão inestéticas.
(Como é que o pessoal usa estes marcadores? Sangram sempre para a página de trás. Tirado do Pinterest)
- Andei a passar os olhos pela lista com todos os nomeados aos Óscares. A categoria de documentários não é exactamente um passeio no parque com um filme palestiniano, que foi o vencedor, um sobre a guerra na Ucrânia, um sobre um caso de abuso sexual no Japão, um sobre os abusos cometidos contra crianças indígenas num reformatório católico no Canadá e um sobre os movimentos de libertação em África durante a Guerra Fria. Onde está um documentário com um polvo quando precisamos dele (sem sarcasmo, My octopus Teacher é muito bom. Recomendo), já não tenho o estômago que tinha aos vinte anos e filmes que mostrem realidades demasiado excruciantes às vezes passo.
Essa bênção que é ser uma pessoa solar e ter uma lista de coisas para ver\ler previsíveis, comoventes, com final feliz...Que linha separa o não querer ver algo porque é demasiado da simples indiferença em relação ao estado do mundo? Adicionei estes títulos à lista (pelo menos os que consegui encontrar) e a seguir passei para a categoria de filmes estrangeiros onde encontrei este chamado The Girl with the Needle - não me está a parecer que a agulha vá ser usada para costurar lindos vestidos além disso é a preto e branco. Adicionei também.
Não completamente relacionado mas há dias acabei a ver um vídeo sobre o artista polaco Zdzislaw Beksinski conhecido pelas suas pinturas perturbadoras. Já as tinha encontrado antes, mas não sabia muito acerca.
Pelo canto do olho vi um outro com o título - porque é a arte perturbadora tão popular? Não tive tempo de ver, mas é sabido que os humanos têm uma fascinação incessante com o mórbido, afinal no Jardim das Delícias é para o inferno que os visitantes olham durante mais tempo não para a orgia do meio. Esta fascinação vive no mesmo mundo onde levamos constantemente com a ideia de que tudo tem ser perfeito, estético, cozy e positivo. Positividade em excesso [tóxica] sempre me soou a um conceito distópico. É como naquele episódio antigo do Welcome to Night Vale em que há uma cidade paralela onde nada acontece de mal e os locutores estão sempre animados e felizes, mas depois descobrimos que eles têm sangue a escorrer nas paredes.
Ou o conceito dinamarquês do hygge - não quero de todo ofender a cultura de ninguém especialmente quando isso os coloca no topo da lista dos países mais felizes do mundo...Sou a favor de uma vida cozy e sem stress - tenho ansiedade, então esta última parte é um tanto difícil de imaginar - mas a questão é: se este conceito está entranhado na psique colectiva como é sabemos se o contentamento de alguém é verdadeiro ou se é uma performance para não estragar a vibe? A pessoa está mesmo feliz ou está a meter sentimentos negativos para dentro? Como se resolvem os conflitos? Ou se fala de um assunto difícil, causa stress mas é um stress necessário.
Seja como for, sempre que alguém diz coisas como estas - vocês precisam de sorrir mais, têm de olhar para lá das nuvens negras para ver o arco-íris, os problemas só nos afectam se deixarmos, vão lá fora apanhar ar e a depressão passa, para sermos mais produtivos basta querer, têm de manifestar bons pensamentos...Imagino essa pessoa com três tentáculos atrás das costas, um rasto de sangue no chão, entranhas suspeitas na gaveta do frigorífico e se olharmos com atenção o sorriso está meio distorcido. Talvez não seja bom viver num mundo onde ninguém pinta merdas estranhas.
(The Skeleton Painter, James Ensor, 1896)
- Se não gostar do Rapariga Mulher Outra isso faz de mim a rainha das opiniões impopulares? Não é propriamente um título que ande há procura...O primeiro capítulo até achei ok, mas o segundo não achei bom e o terceiro também não. Um dos problemas é a própria estrutura, ter somente um capítulo para cada personagem corta o desenvolvimento dos temas e as personagens acabam por não ter espessura, e são uma dezena delas. É improvável que isso vá mudar até ao final então o livro tem ficado a marinar na mesa de cabeceira, uma pena.