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Desabafos Agridoces

"Enfim, bonito e estranho, desconfio que bonito porque estranho"

Desabafos Agridoces

"Enfim, bonito e estranho, desconfio que bonito porque estranho"

A leitora envergonhada e outras reflexões

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(Este post ficou longuíssimo. Mas blog fez 14 anos em Julho por isso dane-se, vai como vai. A gerência agradece o patrocínio do sismo durante a escrita. Só faltou passar um cometa)

Como já contado aqui antes, não tenho conta no Goodreads em vez disso tomo nota daquilo que leio à mão em pequeninos cadernos - seria de esperar que alguém com uma péssima letra e pouca capacidade para tornar alguma coisa esteticamente apelativa escolheria um método diferente, mas não esta que vos escreve. Em tempos antigos e mais livres eu não tomava nota de nada, não via serventia em saber se a pessoa leu vinte ou sessenta títulos...E não é que tenha começado por competição, mas achei que analisar o que foi lido e conseguir formular uma opinião estruturada era uma boa competência para adquirir, até escrevi um post sobre as vantagens de ter um diário de leituras em papel.

Há quem faça o registo em excel. Não, obrigada. Acabei por ter de mudar para cadernos maiores - o que tinha para dizer afinal não cabia numa folha...Mas com tão poucas leituras nos últimos tempos, o registo foi abandonado e vários filmes e livros ficaram no limbo sendo que a maior parte são leituras feitas antes deste reading slump. Então agora estou numa missão: nada vai ficar por anotar. 

Acaba por ser um exercício de vergonha: porque é um pouco triste ter um registo de leitura e estar assim tão desactualizado, qual é o ponto? Porque devia estar a ler a um ritmo regular como qualquer leitora que se preze e porque ao passar os olhos pela lista vejo títulos que gostava de ter lido com mais atenção na altura...Olhando para o tamanho da dita lista este vai ser um longo exercício.

 

**********

(Reflectindo sobre arte esquisita)

De certeza que há pessoas que são produtivas nas suas insónias...Mas como não me apetece ler e com 105 anos de idade fico mal das costas se tentar ver algo no pc enquanto estou deitada, então ponho-me a pesquisar merdas aleatórias. Por exemplo, encontrei uns vídeos sobre história da arte - podem sempre contar comigo para falar de temas realmente palpitantes! 

Na verdade tudo começou com um vídeo que encontrei sobre o Manuscrito Voynich, o famoso livrinho do século XV presentemente a residir em Yale (mas disponível digitalizado online), autor anónimo e escrito num código até agora indecifrável. Há variadas teorias - há quem diga que talvez seja um guia de saúde pois contém desenhos de pessoas (todas as figuras são femininas) a dar banho um tema que não era incomum em livros da época, embora os rituais de higiene aqui sejam deveras peculiares envolvendo tubos e canos; também contém gráficos astrológicos e desenhos de plantas e raízes e o que talvez seja a descrição das suas propriedades embora nenhuma correspondência tenha sido encontrada no mundo real. A escrita parece ser uma língua funcional com algum tipo de lógica. 

 

B1.png(Tirado daqui)

 

Eu cá passei um tempo divertido a imaginar estes homens tão inteligentes ao longo das décadas a partir os miolos e no fim vai-se a ver e isto foi escrito por uma mulher sobre como aliviar as dores menstruais e fazer abortos. Quem sabe?

[Isto trouxe-me à memória o que li em tempos sobre a Escola de Medicina de Salerno que contava com um bom número de médicas que levaram a cabo estudos pioneiros, além das mulheres que trabalhavam como parteiras e curandeiras com conhecimento prático passado através de gerações. Infelizmente com o avançar do período medieval tornou-se quase impossível para elas praticarem medicina e isso podia levá-las à fogueira. Para conseguir empurrar as mulheres para a esfera doméstica em completa submissão era essencial privá-las dos seus direitos reprodutivos e por isso as que tinham este conhecimento eram um alvo preferencial durante a caça às bruxas.

 

C7e6DaXPDDJ-png__700 (1).jpg

 

Por falar em linguagem também me lembrei do Nusho, um sistema de escrita desenvolvido e usado exclusivamente pelas mulheres da província de Huan, na china, para poderem comunicar livremente sem serem notadas. E aquela que se considera a mais antiga língua construída é atribuída a Hildegarda de Bingen - uma mulher de múltiplos talentos, poetisa, compositora, naturalista...E que tinha visões. Oliver Sacks dedicou-lhe um capítulo no seu livro The Man Who Mistook His Wife for a Hat]

Misteriosos códigos e livros perturbantes com sinais de que o Dia do Fim estava próximo e a tendência de desenhar pessoas a entrar dentro da boca de monstros, sem esquecer as ilustrações nas margens dos manuscritos com coelhos a decapitar humanos, freiras a apanhar falos das árvores, muita gente de rabo à mostra e cavaleiros a lutar contra caracóis, referências escatológicas e uma parada de todo o tipo de criaturas fantásticas - revelando um interessante senso de humor e imaginação. Como muitos desenhos mostram reis e clérigos em situações humilhantes talvez fosse uma maneira de gozar com quem estava acima na hierarquia. Talvez estas pessoas estivessem aborrecidas, terem de estar sentadas todo o dia a copiar o Eclesiastes, como nós nos aborrecemos no escritório à Quarta-Feira.

 

B2.jpg(Tirado daqui)

 

(Reflectindo sobre mais arte esquisita)

Mas se falamos deste assunto não podemos passar à frente o nosso bom amigo Jerónimo em particular O Jardim das Delícias Terrenas. Sendo uma obra tão incrivelmente complexa não admira que haja tantas teorias sobre ela incluindo problemas mentais ou talvez alguém andasse a dar nas drogas...Talvez Bosch fosse um visionário pintando coisas que estavam para lá do seu tempo como os surrealistas iriam fazer mais tarde. Mas um documentário que encontrei oferece outra explicação - criada algures entre 1490 e 1510, os tempos eram convulsos. Novas terras a serem "descobertas", uma certa Lisa Gherardini iria tornar-se a face mais conhecida de toda a história da arte, afinal era o sol que estava no centro do cosmos e não a Terra, a inquisição vivia a sua melhor vida enquanto as mulheres nem por isso a virar cinza, houve a reforma e depois a contra reforma. Demónios eram vistos em toda a parte. 

É possível que Bosch tenha simplesmente pintado um reflexo da sociedade em que vivia. Quando fechado o tríptico mostra um monocromático da criação do mundo ao terceiro dia quando Deus separou as águas, então abre-se e temos esta explosão de cores e detalhes que mostra história da humanidade. Temos o passado, digamos assim, Deus está no centro a entregar Eva a Adão sendo que Adão está deitado na relva à direita do Criador. Claro que ele tinha de estar no lugar de honra enquanto é ela que fica com o lado pior, porque é a culpada de tudo e por isso as mulheres devem sofrer ao máximo. Nunca percebi: na Bíblia não diz que foram os dois punidos? De onde será que vêm estas ideias...

500 anos adiante alguém irá escrever que Deus é maneta da mão esquerda...A ideia anterior é reforçada no painel central onde num canto em baixo, aparece Adão a apontar o dedo a Eva que tem uma ball gag na boca - na verdade é uma daquelas coisas redondas que as pessoas comem na Igreja, mas é o que me fez lembrar até porque o significado daquela cena é bem evidente...Silêncio. Uma variedade de animais, uns mais familiares do que outros, compõem a cena. Perto das personagens há um lago de onde saem uns bichos feios, um sinal ominoso que já dá a entender que daí a nada vai tudo para o beleléu. 

 

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O presente com os seus prazeres passageiros e enganadores representado pela famosa bacanal com a sua pletora de homens e mulheres sem roupa em poses inusitadas, flertando alegremente enquanto devoram voluptuosas frutas com gusto. A cena está cheia de elementos com conotação sexual - a inteira obra está cheia de símbolos, aqui estão alguns: os mochos eram símbolo de cegueira espiritual e de trevas; toda a fruta aqui tem um óbvia conotação imoral, particularmente os morangos podem significar promiscuidade por terem muitas sementes, os patos eram considerados sujos e os sapos era um símbolo comum de heresia, vidros rachados e cascas de ovo vazias representam falta de fé.

Há pessoas negras misturadas com brancas e um grupo de homens que parece estar dedicado a práticas gays - relações sexuais sem a estrita intenção de produzir bebés. É a representação de um mundo fora da ordem natural: os humanos corrompendo o propósito divino de se multiplicarem.

E o futuro aterrador que resulta desta corrupção. Uma combinação de violência física, com as almas a serem decapitadas, trespassadas, empaladas, afogadas no gelo (na Divina Comédia o centro do inferno é gelado, os pecadores estão condenados a ficar imóveis), torturadas com instrumentos musicais...violência psicológica - com as almas a enlouquecerem também com o desespero e a ansiedade - e a humilhação extrema. Já é mau ser-se devorado inteiro pelo príncipe do inferno, mas depois ainda se é defecado num buraco onde outros já estão metidos no nojo. 

 

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(À direita: príncipe do inferno com cabeça de mocho. À esquerda: pássaro demónio com esquis, completo com uma frutinha a pender do ramo e o funil a servir de chapéu, As Tentações de Santo Antão)

 

Então a ideia do documentário é que não se trata de surrealismo mas era aquilo que para Bosch e para as pessoas à sua volta era a realidade. Penso que isto torna a obra ainda mais perturbadora - uma coisa é uma pintura com uma girafa com gavetas em chamas, não abrimos a porta de casa e esperemos ver realmente tal criatura, mas a angústia mental de acreditar que a força divina que vos colocou na terra e à qual vocês rezam por protecção e direcção é capaz de vos fazer coisas tão horrendas...Claro que estamos a falar de instituições mais preocupadas em ter poder e para isso o medo é a melhor arma, qual amor.

 

**********

(Reflectindo sobre a relevância da arte)

Outro documentário muito interessante que vi foi sobre Francisco de Goya, o famoso pintor espanhol. É mais alguém que cai no saco do - esta pessoa não estava bem mentalmente ou é drogas e estas teorias normalmente incidem sobre as Pinturas Negras feitas entre 1819 e 1823. Uma muito conhecida é Saturno devorando um filhobaseado no episódio da mitologia grega em que o titã Cronos destrona o seu pai e depois com medo que o mesmo lhe aconteça engole inteiros cinco dos seus seis filhos, excepto aqui o Deus está literalmente a devorar aos bocados o seu filho adulto com uma expressão alucinada.

Quem se lembraria de pintar uma coisa destas? Na verdade, Goya tinha uma confortável posição como pintor da corte em Madrid, pintava pessoas bem vestidas em festas e piqueniques, além de retratos da família real e cenas bíblicas - uma mulher de vestido azul e amarelo sentada com um guarda-sol, outra a andar num baloiço, uma cena das vindimas, um grupo de homens com um papagaio de papel...Ao mesmo tempo ele estava insatisfeito com o estado da sociedade onde a Igreja mantinha as pessoas ignorantes e presas a superstições e medos medievais, como o medo de bruxas e demónios.

 

B5.jpg(Witches' Sabbath, 1798)

 

Ao longo da vida ele trabalhou para três monarcas diferentes e o último era particularmente despótico então quando os franceses vieram existia a esperança de que os valores iluministas levassem a uma necessária reforma social e embora a inquisição tenha sido de facto abolida não demorou muito para o país estar mergulhado no caos - as execuções, a fome, as violações, os corpos mutilados...Goya registou tudo num conjunto de gravuras intitulado The Disasters of War (1810-1820). Colocando de lado conceitos de heroísmo e patriotismo para mostrar a realidade dos efeitos da guerra sob as pessoas desesperadas para tentar sobreviver, é quase um trabalho de foto-jornalismo.

Ele viu com os seus próprios olhos que a guerra é um inferno.

 

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("There is no one to help them")

 

No fim da guerra Espanha voltou a ser uma monarquia absoluta, a inquisição foi instaurada de novo (seria finalmente abolida em 1834, nós fizemos isso dez anos antes. Não é grande flex) e Goya velho e doente foi obrigado a deixar Madrid. Foi neste período que as pinturas negras vieram à existência - 14 obras grotescas, sem Deus nem esperança, feitas directamente no papel de parede da casa onde o mestre estava em completo isolamento. De novo: é mais fácil digerir a explicação que era alguém a ter uma crise psicótica, é como se isso criasse uma distancia confortável entre nós e os quadros, do que a ideia de que era alguém que estava profundamente desapontado com a humanidade.

 

B7.jpg(Witches' Sabbath orThe Great He-goat)

 

Agora, porque é que estou a escrever isto tudo? Admitindo, não é muito entusiasmante aprender sobre arte através de um manual de História com listas secas de características...Mas mesmo pinturas muito antigas podem ser relevantes hoje. O vídeo sugeria que Saturno Devorando um Filho possa ser sobre as coisas terríveis que os humanos são capazes de fazer para ganhar poder e para o manter.

Talvez seja isso que Goya nos esteja a tentar dizer: que devemos ter cuidado com aqueles que mal podem esperar para chegar ao poder e controlar a narrativa. E as consequências de deixar-mos a razão ser pisada por estas amálgamas de histeria, ignorância e informações falsas. The Disasters of War é ainda mais difícil de ver hoje em dia porque reflecte o nosso falhanço enquanto sociedade. Aqui estamos a ver continuamente coisas impossíveis de contemplar de tão horríveis, mas temos de continuar a viver como se fosse normal...

 

"Although these prints are (of course) products of a specific historical moment, there is a tragic immediacy in these images of suffering. I wish these prints only told us about the past — instead, they tell us too much about the present. I cannot look at them without immediately thinking of how much they share in common with photographs coming out of Palestine today.

Here, I want to remember the words of Rachel Carson: “Until we have the courage to recognise cruelty for what it is — whether the victim is human or animal — we cannot expect to be much better in this world”

(Tirado daqui)

 

Enquanto espero que alguém me leve ao Prado, falo como se ficasse nos antípodas, podemos pelo menos ver o original de As Tentações de Santo Antão no Museu de Arte Antiga - conta a história deste homem pio que vivia como ermita até o Diabo ter decidido infligir-lhe uma série de sofrimentos e armadilhas para o fazer pecar. Uma dessas armadilhas aparentemente foram mulheres peladas. Então na parte da direita da obra, no meio de todas aquelas criaturas bizarras e pessoas a voar montadas em peixes, temos uma cena familiar - uma mulher banha-se nua forçando o Santo a desviar o olhar. E esta pútrida prostituta convive no museu com as madonas amamentando o menino. Há tantas mulheres nestes quadros, mas há mesmo mulheres nestes quadros? É uma questão relevante.

É mais divertido pensar No Jardim das Delícias Terrenas como uma sátira com a parte do meio uma ode ao amor livre do que pensar que é um sermão sobre um mundo pecaminoso onde todas as coisas boas são enganadoras e vão levar à danação eterna. E isto fez-me pensar na quantidade de pessoas que dizem com toda a convicção que o mundo agora está ao contrário porque agora é tudo gay, e esta gente só vem para aqui estragar, e as mulheres já não sabem qual é o seu lugar...O mundo que está neste quadro é exactamente o mundo que esta gente deseja.

Temos de dividir a preocupação por tantas coisas - extrema-direita e estes estranhos grupos que parecem surgir do nada a interromper sessões de apresentação de livros, exércitos de Tate-wannabes. E por mais que se fale disto não deixa de surpreender como velhos métodos continuam a funcionar tão bem, o medo continua a ser a arma mais poderosa de controlo. Acreditar em demónios e bruxas, a mesma coisa só com outra roupagem. São grupos que predam o medo - receio de perder o emprego, que alguém faça mal aos seus - e distorcem esse medo usando-o para a sua vantagem. Quando mais caos melhor.

 

**********

(Partindo em direcção ao espaço)

A semana passada algo completamente diferente despertou a minha atenção. Cliquei num vídeo sobre um mar interior pré-histórico que existiu há cerca de trinta e quatro milhões de anos chamado Mar Interior Ocidental. Dividia os Estados Unidos, Canadá e México de alto a baixo, criando de cada lado dois continentes que já não existem. Tinha 970 quilómetros de largura e águas rasas com 900 metros na parte mais funda, era quente e tropical. Mas apesar de ser pequeno este mar albergava uma grande quantidade de criaturas muito vorazes e de excepcional tamanho - nem dava para molhar os pés, pois nas suas margens viviam os maiores crocodilos que já existiram. Por causa disto também tem o nome de aquário do inferno, parece de propósito. 

Quando eu era nova só era aceitável gostar de dinossauros se vocês fossem um rapaz de nove anos. E não posso dizer que tenha ficado interessada em decorar aqueles nomes todos mas fiquei em saber mais sobre os diferentes tempos geológicos que a terra viveu até esse questionável acontecimento que foi termos aparecido. Felizmente está tudo dividido em eras, períodos, etc. para ser mais fácil o nosso cérebro açambarcar. O problema disto é que depois comecei a pensar que se calhar devia ir ao início: mas como é que aparecem os planetas? E as estrelas como é que nascem? E as galáxias? Até criei uma pasta para guardar artigos sobre isto. Se calhar devia era tentar dormir.

Quem Escreve Aqui

Feminista * plus size * comenta uma variedade de assuntos e acha que tem gracinha * interesse particular em livros, História, doces e recentemente em filmes * talento: saber muitas músicas da Taylor Swift de cor * alergia ao pó e a fascistas * Blogger há mais de uma década * às vezes usa vernáculo * toda a gente é bem-vinda, menos se vierem aqui promover ódio e insultar, esses comentários serão eliminados * obrigada pela visita!

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