Espanar o pó das estantes não tem apenas uma função de limpeza mas também serve para alimentar este blog - seria de esperar que com uma micro biblioteca a dado ponto não haveria mais nada para fotografar, mas já que não tiro fotos a bonitas paisagens em terras longínquas, então tiro aos meus livros. É o que é. Coloquei os livros por ler numa nova disposição - não parecem assim tantos ou estou a tentar enganar-me a mim própria. Como a Feira do Livro é só em Maio ainda estou na fase em que penso que vou mesmo adquirir os 31 títulos que tenho na whislist. Algumas coisas tem me chamado a atenção ultimamente: noto que a trend dos retelling focados em figuras femininas da mitologia [grega] continua fulgurante. sou uma rapariga simples: vejo um e coloco na lista.
Embora haja um ou outro que tire depois de ler as reviews...Isto de pegar numa história tipicamente falocêntrica e dar-lhe um twist feminista mas depois uma pessoa desavisada vai ler e a personagem feminina tem menos personalidade do que as lesmas no meu quintal e as mulheres odeiam-se todas umas às outras, já tivemos essa experiência no passado e mais não, obrigada. Qual é o ponto? Para isso leio os originais. Também encontrei um retelling do1984 focado na Julia - preciso disto na minha vida sim ou sim? - um volume de contos de terror só de autoras (organizado por Joyce Carol Oates, que tenho de admitir nunca li), mais escritoras latinas e títulos queer.
E foi quando estava a colocar os livros nos seus lugares que notei que tenho mais títulos por ler com a palavra mulher do aquilo que pensava:
- A Mulher - Manual para Mulheres de Limpeza - Se Isto é uma Mulher - Vida de Raparigas e Mulheres - Grandes Mulheres da História - Mulheres Portuguesas - A guerra não Tem Rosto de Mulher - Uma Vindicação dos Direitos da Mulher - Rapariga, Mulher, Outra -
Aqui estão os meus três amores - partilhei esta foto com Leitora Júnior. Mantenho um olho naquilo que ela lê, o que significa que lhe pergunto de tempos a tempos. Não é muito complicado. Mas as respostas podem ser inesperadas - não estava à espera da menção a um livro do Murakami. Recomendação de um funcionário da livraria. Não consigo deixar de imaginar a história de uma livreira que recomenda obras "inapropriadas" às pessoas de propósito - tenho aqui o livro ideal para ler nas suas férias, chama-se A colonial Penal. Sim, é uma comédia.
Tinha-me esquecido que às vezes quando encontro alguma passagem especialmente absurda (não no bom sentido) além de sublinhar coloco uns pontos de interrogação ou exclamação. Quando a irritação já está a atingir um pico. Fui lembrada disto quando em vez de estar a aspirar o chão como devia me sentei a folhear alguns livros incluindo o Normal People, já mencionado aqui antes. Dava para adivinhar que ia ser uma leitura atribulada: os primeiros pontos de interrogação aparecem logo na página 26.
Se não for um livro em papel normalmente não prossigo, se a leitura estiver a ser meh e não for muito grande até posso acabar, mas em papel mesmo que retorne o livro à estante o dito vai continuar a olhar acusatoriamente para mim e por isso acabo por me consumir a tentar acabá-lo. Experiência gira especialmente se o livro tiver mais de 500 páginas...Como The Paying Guests da Sarah Waters. Fomos dos livros favoritos aos traumas.
E folheando os registos aqui está a dimensão geográfica das minhas leituras no ano anterior a ter feito o desafio da volta ao mundo. Ai que pobreza...Incluindo a minha falta de unhas. Estou a tentar lembrar-me que livros li para ter assinalado estes locais - aquele minúsculo ponto no meio da Ásia é porque li um conto de uma autora do Bangladesh, ainda me lembro dele passado este tempo - uma mulher compra um frango assado e acaba a devorá-lo sozinha sentada em cima da cama.
O caderno mostra que li: So Long a Letter de Mariama Bâ; Nervous Conditions de Tsitsi Dangarembga e My Sister, The Serial Killer de Oyinkan Braithwaite. São os três óptimos. Da Argentina li As Coisas que Perdemos no Fogo da Mariana Enríquez que também é óptimo. Nada mal apesar de tantos espaços em branco. Por coincidência no dia anterior à limpeza da estante encontrei nas pastas do pc um livro de poesia de uma autora da Nova Caledónia. O longínquo faz-se perto.
Claro que a Palestina é marcada separadamente no mapa. O que li não foi um romance (há uns anos li um livro que penso nunca ter mencionado aqui - Mornings in Jenin de Susan Abulhawa. Gostei muito, salvo seja) mas um título de não-ficção: Captive Revolution:Palestinian Women's Anti-Colonial Struggle within the Israeli Prison System. Algo mais específico, mas em retrospectiva se há tantas violações dos direitos humanos num espaço confinado é kafkiano que seja necessário um campo de concentração à vista de todos vinte e quatro horas por dia para tomarmos consciência que há algo de muito errado a passar-se há muito tempo. Mas tem de se dizer nas notícias que é uma guerra, não se pode dizer que é uma limpeza étnica. Já sabemos como as guerras funcionam então está tudo bem. Tenho me apercebido nos blogs de um maior interesse em livros sobre a experiência palestiniana e tenho andado a tomar nota dos títulos. As palavras são importantes. Elas serão encontradas mesmo nos escombros.
1. Há anos encontrei num blog ou site, já não sei, uma fotografia que mostrava um grupo feminista em protesto com a parte de cima a descoberto e bem lá atrás via-se o que parecia ser uma figura masculina a empurrar um carrinho de bebé. O comentário à foto era que este homem estava a fazer mais pela igualdade do que aquelas mulheres...Na altura fiquei confusa. Agora penso em tudo o que precisámos de fazer e de passar: espancamentos, prisões, alimentação forçada, ficarmos amarradas a grades, morrermos à frente de cavalos, queimar roupa, usar gorros cor-de-rosa...E pelos vistos nada disso tem valor perante um homem a cumprir a sua obrigação básica como pai.
É humilhante para nós mas ironicamente também para os homens, não será? Não é humilhante que o padrão seja tão baixo que frases como "eu costumo mudar as fraldas ao meu filho" ou "nunca bati na minha mulher" se tornam dignas de prémio? Não é um flex. Mas é fácil e confortável, isso é certo...
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2. Tenho andado à procura de novas receitas para deixar o menu semanal menos aborrecido e mais saudável embora por alguma razão acabe sempre com zero receitas de salada e pelo menos duas de lasanha...Poder-se-ia pensar que uma feminista não teria nada para se queixar na sua busca por uma receita de bifinhos. Mas tenho o hábito de ler o que as pessoas escrevem antes da receita - porque será que tantos destes textos são um lamento da mulher sobrecarregada? "Hoje cheguei tarde do trabalho - roupa para passar, crianças para dar banho, varrer, lavar as janelas, ir à lua...Sabem como é, não é? Aqui está a massa que improvisei para o jantar:"
Há quem vá mais pela via sociológica: "é verdade que nós mulheres temos uma vida stressante com emprego, casa, família então hoje venho partilhar esta receita muito prática" ou pela via mais íntima: "pois é uma moça chega a casa vê que se esqueceu de tirar algo para o jantar e o marido tá ali cheio de fome, já vos aconteceu queridas leitoras?" O marido é uma figura meio nublosa, por vezes um pouco exigente: "fiz esta receita de pescada porque o meu marido não come peixe com espinhas" Será aquele rapaz do anúncio do pão de forma? Também não sou apreciadora, mas eu não sou o sexo forte.
O meu preferido no entanto é um que dizia algo como: "vejam lá, comprei x para o jantar e depois o marido disse que não queria e os miúdos também não queriam e eu disse-lhes que estava a perder a paciência e daqui a nada atirava tudo pela janela, ah este meu feitiozinho..." Pontos a esta senhora pela honestidade. E pela receita de croquetes - que não eram o plano inicial dela. Claro que chegados aqui vocês podem apontar que nada nestes posts indica que o parceiro não faz qualquer tarefa em casa. É verdade, em muitos casos fazem. Bem...Em alguns casos
("Cerca de 90% dos homens inquiridos num estudo sentem que partilham responsabilidades pelas tarefas de cuidado em casa, mas apenas 61% das mulheres sentem isso, concluiu um relatório sobre parentalidade do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra")
( "(...) Os dados revelam, portanto, que enquanto, para o homem, ser pai resulta num reforço dos rendimentos — é a chamada “vantagem da paternidade” –, para a mulher, ser mãe equivale a mais responsabilidades familiares, mais interrupções na carreira e, à boleia, maior desvantagem salarial (...)")
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3. Quando era nova a minha única queixa relativamente a casas de banho públicas era a falta de um cabide em muitas delas. Agora penso que deviam existir sítios para mudar os bebés em ambos os wc e que deviam estar disponíveis produtos menstruais de graça também em ambos...Quantas mais vezes vamos falar em casas de banho inclusivas só para o assunto morrer a um canto cinco minutos depois?
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4. Assuntos feministas não me interessavam quando era nova e depois passei a achar que não era como as outras raparigas. Eu era cringe. Mas algumas coisas já me deixavam um pouco perplexa. Então existe uma mente masculina e uma feminina ok, não há problema - não sei fazer uma equação, posso ser irracional e quando há anos recebi um telemóvel não prestei muita atenção aos detalhes técnicos porque estava demasiada entusiasmada com o facto de ser cor de rosa choque e ter flores. Mas depois em concursos de televisão diz-se: "há quanto tempo estão casados? É melhor perguntar à esposa, elas sabem sempre estas coisas" - não me vou lembrar da vossa data de aniversário e não é por não gostar de vocês, mal me consigo lembrar da minha.
Não era suposto as mulheres serem péssimas com números? Outro dia em qualquer lado - "se a sua esposa disser que não quer receber um presente, vá comprar". Se me disserem que não querem um presente, eu não vou comprar. Suponho que então sou um homem? Ou é o meu cérebro no espectro? E algumas pessoas ficam chocadas por verem que outras não se encaixam no sistema binário. Fico mais chocada com o facto de que a última vez que encontrei uma review do livro as mulheres são de Vénus e os homens de Marte não foi há dez anos, mas sim há apenas uns poucos meses.
Como tudo o que advém de vivermos uma sociedade patriarcal, esta diferença entre mentes, do que constitui os dois géneros, parece ser puramente arbitrária e com o único intento de beneficiar uma das partes que fica livre do esforço de entender e compreender os outros (empatia é coisa de mulheres) e tem sempre desculpa para se esquecer de comprar o fiambre. Sem sustentação biológica (se eu fosse a biologia colocaria um processo por toda a estupidez proferida em meu nome e partiria num cruzeiro) nem sentido na vida real. Nem sustentação cultural\histórica - é suposto ficarmos em casa porque era isso que as nossos ancestrais faziam, ficar na caverna...Ou elas não ficavam lá?
(Partilhei esta notícia com leitora Júnior e por graça perguntei se na escola ainda ensinavam que os homens caçavam e as mulheres colhiam fruta...Resposta: "sim, e que elas faziam cestinhas")
(Olhem para esta juventude a desafiar as normas biológicas - ou simplesmente a seguir normas culturais, algo que não está no cérebro mas é construído, próprias da sua época e que mais tarde sofreriam uma mudança - mais sobre este tópico aqui e aqui)
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5. Virei uma feminista previsível. Gosto de luas, de serpentes e de bruxas, de figuras femininas da mitologia: Medusa, Lilith e Hecate...E de ilustrações como as da María Hesse, com as suas mulheres rodeadas de flores
Espero que nudez não seja incómodo para ninguém, se for estão no blog errado porque há mais fotos\ilustrações de mulheres destapadas flutuando por aqui. Mas outro dia estava a pensar se não haverá aqui um perigo subjacente - sim, há quem use o nosso "místico poder vaginal" para vender merdas ou tentar engrupir gente para coisas poucas claras, mas para lá dessa questão - vamos pensar no Memorial do Convento, por exemplo. Será que fazia sentido alterar o papel das personagens? Penso que a maioria das pessoas que de facto leram o livro diria que não tem como ser o nosso maneta a carregar aquela carga mística. Tem de ser Blimunda - a falar da vida e da morte ao pé das estátuas dos santos, porque na barriga da mãe já tinha os olhos abertos e via tudo, e a ter a tarefa de recolher as vontades que vão colocar o engenho a voar. A fantástica bruxa saramaguiana como dizia num artigo.
Em O Dia dos Prodígios da Lídia Jorge também existe personagem feminina especialmente mística, presa pelo marido em casa a abordar uma colcha com um dragão e que começa a ver com os olhos fechados - Branca. Mais um nome simbólico. É interessante porque ao mesmo tempo sempre fomos retratadas como seres carnais cheios de paixões irracionais que precisam de ser controladas...Amo estas duas obras fortemente. Há uma sensação de empoderamento nestes símbolos e figuras, não surpreende que agora se encontrem tantos livros que resgatam as personagens femininas da mitologia do enquadramento patriarcal. Por outro lado penso se tal não pode virar-se um pouco contra nós e reforçar a ideia de que homens e mulheres vieram de planetas diferentes e outros estereótipos, afundando-nos ainda mais neste fosso binário.
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6. O modo como se encara o assunto da desigualdade de género nunca cessa de espantar. Para já não me lembro de outro crime que tão prontamente seja desvalorizado e desculpado, outra conversa que tão depressa seja sabotada, mais depressa se aterra em Vénus de que se mantém uma conversa sobre desigualdade sem que alguém pergunte porque não estamos a falar dos homens, a misandria não tem limites hoje em dia realmente. Depois há o: se não me aconteceu não existe. Normalmente uma pessoa não precisa de passar por algo para empatizar certo? Se o senhor Arlindo foi atropelado e o condutor fugiu eu em princípio não preciso de passar pelo mesmo para ficar revoltada com o sucedido.
Também tende a acontecer com as doenças mentais - "é uma coisa moderna que inventaram agora e que não existia se as pessoas fizessem mais exercício físico e dessem umas palmadas nos miúdos para ficarem quietos". Outro dia vi o seguinte comentário: rapariga entra para um curso tradicionalmente masculino, estava com receio de como ia ser tratada mas aparentemente depois correu tudo bem. Então achou melhor parar de ler textos feministas para não ficar "negativamente influenciada". Devia ter guardado isto para partilhar porque é de facto bizarro.
Esses textos alertam para problemas que existem. Eu posso não querer ver uma reportagem sobre o tratamento dos frangos nos aviários e continuar a jantar sossegada, mas o problema é meu não da peça que está a falar de um problema real e documentado. Só porque correu tudo bem não vou ignorar aquelas para quem não foi assim - é como aqueles comentários: "eu nunca faria tal coisa a uma mulher", parabéns por isso senhor Arlindo mas o mundo não se restringe à sua existência. Como é que alguém vai defender os seus direitos sem conhecimento? E perceber a importância desses direitos se não ouvir? A constante necessidade de provar que existimos e que a nossa experiência é real...
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