- Parece que agora o mundo se divide entre os que ficaram agastados com a victória da Ucrânia na Eurovisão e os que ficaram contentes com isso. Não percebo o argumento dos primeiros que dizem que o mais importante ali devia ser a música e não a política...Mas é da Eurovisão que vocês estão falar. Na verdade, quase tudo na vida é político não é? Por exemplo: eu sou uma mulher, o meu corpo é político. E eu cá acho que em tempos excepcionais a música pode passar para segundo plano em favor de uma mensagem forte de solidariedade e resistência, na qual a arte sempre teve um profundo papel.
Também quem é queriam que ganhasse dentre os que estavam nos lugares cimeiros? A "música" de Espanha? Eu pelava-me para saber quantas pessoas que estão sempre a chagar a cabeça dos outros dizendo que é uma vergonha cantar em inglês ou cantar metade em inglês e que é preciso respeitar as tradições foram a correr votar nessa. Coerência por que nos abandonaste?
- Fui dar a dose de reforço da vacina. Nas duas primeiras vezes esperava que estivesse pouca gente, mas desta vez disseram-me que só iam abrir o frasco se surgissem mais pessoas para a mesma vacina e eu comecei a suar forte no lugar enquanto olhava subrepticiamente para a entrada...
- Aqui há uns anos a página principal do Sapo tinha uma secção dedicada a lifestyle e não sei quê onde por vezes apareciam artigos dourados, não exactamente no melhor sentido. É bom ver que a tradição não se perdeu:
Lembram-se daquele dia em que souberam que tinham tido nota para entrar no curso que queriam? Quando terminaram a vossa tese de doutoramento? Fizeram voluntariado em Timor? Mudaram-se para a vossa primeira casa? Ganharam um Nobel? Actuaram na Eurovisão? Adoptaram o vosso cão, Pitufo? Discursaram nas Nações Unidas? Venceram uma doença grave? Conseguiram publicar o vosso primeiro livro? Visitaram as Pirâmides de Gizé? Todos esses marcos empalidecem perante o dia em que assinaram um contrato com outra pessoa. Na verdade sou eu que sou amarga, porque estou velha e ainda não vivi o dia mais importante da minha vida e as minhas unhas estão ruídas até ao sabugo.
- É uma arte conseguir manter um ar seráfico quando alguém diz coisas como: "as mulheres dizem uma coisa, mas querem outra"; "tem de se dar um desconto porque os rapazes serão sempre rapazes" ou este famoso ditoche: "Hell hath no fury like a woman scorned". Não tenho bem a certeza sobre isso, já li sobre casos de rapazes que abriram fogo matando pessoas aleatórias porque as miúdas não lhes davam a atenção que eles achavam que mereciam...Parece-me bastante irracional.
É irónico que esta frase seja atribuída a alguém que viveu num tempo em que as mulheres não tinham direitos, podiam levar pancada sem que nenhuma alma se importasse [como acontecia neste país não há muito tempo: matar a esposa por "honra" e não sofrer nenhuma punição. Nós sempre fomos de brandos costumes] e não podiam escrever para deixar a sua opinião; e criou personagens masculinas que nunca tiveram um marido a exigir comida na mesa, louça para lavar e oito filhos agarrados às saias e por isso tinham tempo para estar sentados a maçar caveiras com filosofia.
- Isto faz-me lembrar quando recentemente fui fazer um exame e o médico começou a debitar opiniões sobre o género feminino que ninguém lhe pediu. Quando lhe disse que tinha ansiedade ele respondeu que "era normal. Todas as mulheres têm ansiedade e se não têm então elas não são mulheres são outra coisa". Um mundo onde as mulheres são seres incontroláveis e os homens são estóicos e não precisam de ajuda psicológica. Que felicidade....
- Da jovem de dezassete anos Catherine Morland para a jovem de dezassete anos Natalie Waite, se bem que neste segundo caso as coisas são um pouco mais inquietantes...Quarto livro e nenhum desapontamento até agora. Esta leitura também foi impulsionada pelo filme com a Elisabeth Moss a fazer de Shirley que numa mistura de ficção e biografia se situa no período em que Hangsaman foi escrito. A esta altura já me passaram pela vista (em livros e filmes) um bom número de raparigas a percorrerem o tortuoso caminho para a idade adulta. Claro que os homens também escrevem histórias destas mas essas são consideradas obras essenciais da humanidade e recebem designações chiques como bildungsroman.
- Que nervos quando se desliga o aparelhinho antes de uma pessoa chegar ao fim de uma parte, também acontece com os livros físicos: o comboio ou o autocarro sempre dão para parar na altura crucial - ou a meio dos diálogos. Quando tinha aulas, às vezes continuava a ler mesmo já dentro da sala durante o caos inicial. Ainda tive a sorte de beneficiar da nobre tradição do furo, até chegarem as inúteis aulas de substituição (e que segundo as minhas apurações recentes continuam a não servir para nada). Bem disse alguém que a vida é uma série de obstáculos para vos impedir de continuarem a ler o vosso livro.
- Além do Sensibilidade e Bom Senso que ainda não tive tempo de começar (e que não tem margens onde escrever...Triste) tenho outros dois livros na mesa de cabeceira. Não há nenhuma razão lógica para isto...
- Mas já passei algum tempo a escolher o marcador ideal para cada um. Há rituais que não se podem descartar.
- Quando estava a colocar os livros por ler na nova estante percebi que dadas as condições actuais é bem possível que alguns títulos permaneçam assim por mais algum tempo - sempre foi um pouco assim, especialmente se vocês não forem dados a leituras (e filmes) alegres, então estava a arrumá-los e a pensar: este não, nem este, este definitivamente não...Devo finalmente ler esta distopia envolvendo mulheres que toda gente até Neptuno já leu? *Um minuto a ver as notícias* talvez não agora. Embora na altura não tenha sido dos meus preferidos, dou por mim a pensar muitas vezes no Hope in The Dark da Rebecca Solnit e na sua ideia positiva sobre o trabalho activista. Qualquer dia tenho de o reler.
Primeiro livro do desafio despachado, na verdade esta é a terceira vez que o leio. Eu bem disse que não era muito boa a levar desafios por diante...Catherine é uma personagem demasiado adorável para se resistir. E para uma obra com mais de duzentos anos, é interessante o quanto ela se parece com uma qualquer adolescente: Catherine não tem um temperamento muito aplicado nem é especialmente bonita ou talentosa; não sabe muito do mundo e a ideia de sair de casa e poder conhecer pessoas novas deixa-a entusiasmada - mas nem sempre é fácil saber o que fazer ou o que dizer.
Os seus julgamentos sobre o carácter daqueles que a rodeiam e sobre as situações são muitas vezes equivocados - não é tão confuso quando alguém diz uma coisa e depois faz outra? Tem de lidar com pessoas tóxicas que dizem ser suas amigas (as Isabellas são uma inevitabilidade desta vida) e que a levam a fazer coisas das quais mais tarde se arrepende. Tem uma obsessão por um tema em particular e alguém que lhe faz sentir borboletas na barriga.
Considerado uma sátira aos romances góticos, boa parte da hilaridade da história vem do contraste entre o que se espera de uma heroína e o quão prosaica é Catherine e o ambiente em que se move, em que as viagens decorrem sem incidentes, ninguém é trancado em quartos e os baús não contêm qualquer mistério.
É algo mais presente na segunda parte, mas achei interessante notar as subversões ao género que vão pontilhando a narrativa, mesmo antes de chegarmos à parte da abadia. Era esperado que uma heroína fosse um modelo perfeito de beleza e virtude e que fosse passiva, mas Catherine não sabe, por exemplo que "no young lady can be justified in falling in love before the gentleman’s love is declared, it must be very improper that a young lady should dream of a gentleman before the gentleman is first known to have dreamt of her". Em vez de ficar pálida e desmaiar quando vê Henry com outra mulher ao lado (ou sair a correr como está sempre a suceder nas telenovelas) ela assume que deve ser a irmã e "(...) instead of turning of a deathlike paleness and falling in a fit on Mrs. Allen’s bosom, Catherine sat erect, in the perfect use of her senses."
No entanto acabei por achar que classificar o livro como apenas uma sátira é um bocado superficial - para Jane conseguir citar tantos detalhes de novelas góticas é porque as deve ter lido. Faz pensar o quanto Catherine Morland é um reflexo da própria Austen, uma leitora voraz com uma imaginação fértil (e afinal quem não lê romances deve ser muito estúpido!) e também faz pensar que talvez ela esteja menos a atirar pedras a Anne Redcliffe e mais a usar essa base para criar o seu próprio estilo literário.
Esta relação é muito desigual. Catherine e Henry têm oito anos de diferença, o que suponho que não fosse nada incomum, mas como ela é tão inexperiente o desnível fica logo evidente. Ela está sempre um passo atrás na conversa [de novo, relatable] Por sorte a nossa heroína tem um coração sem malícia e está pronta a aprender e Henry, que tem a mania que é engraçado, está mais do que contente por ter uma rapariga inculta a sorver tudo o que ele diz com admiração.
"She was to be their chosen visitor, she was to be for weeks under the same roof with the person whose society she mostly prized — and, in addition to all the rest, this roof was to be the roof of an abbey! Her passion for ancient edifices was next in degree to her passion for Henry Tilney." Não tenho moral para falar das minhas escolhas aos dezassete anos, mas talvez casasse mais depressa com um edifício antigo...
Não ficamos a saber se o pedido de casamento foi bonito porque Jane despacha esses shenanigans a alta velocidade no capítulo final o que me leva a concordar com uma das análises que encontrei: este não é o clímax da história, mas sim quando Catherine é forçada a sair de Northanger. Isto mostra que o maior interesse está no amadurecimento da personagem, algo que fica claro neste momento. Ainda que este livro seja menos desenvolvido e subtil que os seguintes (avaliação que eu devia fazer só no fim mas ok) os traços tão característicos dos romances da Austen já estão aqui presentes.
Agora, avançando: o próximo título será Sensibilidade e Bom Senso. Este vai demorar um pouco mais porque é maior e está em inglês, além de que para não enjoar é melhor intercalar com outras leituras - parece que fiz de propósito ao escolher um livro da Shirley Jackson, mas foi coincidência.
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