O útero pouco comovido
A conversa de que neste país nascem poucos bebés anda-me a irritar. Primeiro porque periodicamente isso ocupa espaço nas notícias como se tivessem medo que nos esquecêssemos que não estamos a cumprir a nossa missão de ter 2,1 ou 2,5, seja lá qual for o número de filhos necessários para que não se extinga a raça lusa. Que fêmeas egoístas estamos a criar? E em segundo porque quando se fala do assunto não vejo serem abordadas medidas concretas para tornar menos difícil a vida das mulheres.
Nada sobre eliminar os obstáculos que dificultam conjugar a maternidade com o trabalho, nada sobre as mulheres trabalharem o dobro ou o triplo (trabalho extra que não é sequer valorizado), nada sobre melhorar os cuidados de saúde para que os preciosos números não nasçam na estrada porque não havia obstetras no hospital que ficava mais perto, nada para diminuir o fosso salarial entre homens e mulheres, nada concreto para diminuir a violência doméstica...
E depois esperam que o meu útero se comova. Quando eu era uma feminista no início dos dias, fiquei pasmada diante da clara explicação dada por outras feministas sobre o papel do corpo feminino nesta sociedade e neste sistema económico. Agora não tenho nenhuma dúvida que para este mundo nós somos coisas. Não temos valor humano, somos um recurso que é útil porque serve para expelir mais mão-de-obra para o sistema e mais carne para canhão para os sucessivos conflitos provocados pelos lunáticos que ocupam o poder.
Somos um recurso que eles desejam controlar ao máximo. Quanto mais controlado, mais comprimido dentro dos sistemas patriarcais (sendo o casamento, já sabemos, o preferido e muito provavelmente o mais eficaz), mais vigiado e escrutinado - e claro: quanto mais pesadas forem as sanções para as que se rebelarem - melhor para eles. Não é nenhuma coincidência que os momentos de forte luta feminista sejam acompanhados pelo despoletar de movimentos fascistas, conservadores e afins - tão importante é terem as patas em cima de nós que atacam com toda a força. Quando começamos a descascar a cebola vemos o quanto tudo na História se resume a isto: controlar o nosso corpo. Políticos e homens ornamentados com vistosos paramentos religiosos gostam de falar sobre a importância da vida, mas é mentira. Eles não querem saber de vida nenhuma.