A musa demitiu-se e comprou um limão
Há dias li uma short-story que começa com a protagonista a descrever o seu amante sentado à janela. Um bom conto que me fez reflectir sobre os papéis patriarcais do observado e do observador. Foi algo que só percebi claramente quando comecei a ler mais autoras. Só nessa altura comecei a pensar nas muitas vezes em que encontrei mulheres descritas - de todas as formas, em todas as posições, em diversos graus de gula...Mas tão raramente encontrava o contrário.
(The Triumph of Bacchus. 1643-59)
[Michaelina Wautier nascida em 1604 em Mons, actual Bélgica, é considerada a primeira artista a ter retratado a nudez masculina. Esta monumental cena pagã (270 x 354 cm) irradia sensualidade com o corpulento Deus fitando o cacho de uvas de boca aberta. Do lado direito está a própria pintora encarando-nos de frente. Inicialmente a autoria das obras foi atribuída ao seu irmão com quem partilhava um estúdio. Só em 2018 Michaelina teve direito a uma retrospectiva]
À mulher o papel que está reservado é o da musa: sublimada e endeusada, mas também sem história. Não pensa ou fala, é passiva - não produz nada. O homem atrás da tela, pelo contrário, é o agente que analisa, que transforma o que vê, que deixa a sua marca. É activo. O resultado desta dinâmica está patente no cânone literário, nos corredores dos museus...
Em A Room of One's Own, Virginia está na biblioteca perplexa diante da quantidade de literatura que os homens já produziram sobre as mulheres - "O sexo e sua natureza bem poderiam atrair médicos e biólogos; mas era surpreendente e de difícil explicação o fato de que o sexo — quer dizer, a mulher — atrai também ensaístas agradáveis, romancistas desonestos, rapazes com diploma de licenciatura em letras, homens sem diploma algum, homens sem qualificação aparente, salvo o fato de não serem mulheres". Alguém pode até chegar a pensar que somos altamente valorizadas...
(Sylvia Sleigh, Imperial Nude. 1977)
Mas a verdade é outra..."I moved in a world of saints and angels, naked nymphs and ornamental wifes (...) The eyes of men had made these. The eyes of men consumed them. We were so rarely in our own story." Christina Rossetti tem um poema chamado In an Artist's Studio, talvez inspirado no seu irmão - o pintor Dante Gabriel Rossetti. No seu estúdio ele tinha muitos quadros de Elizabeth Siddal, musa dos pintores pré-rafaelitas e que mais tarde se tornou sua esposa. John Everett Millais retratou-a como Ofélia, flutuando sobre as águas...O poema diz assim:
Cortar com esta dinâmica implica coragem ("I didn't have time to be anyone's muse. I was too busy rebelling against my family and learning to be an artist" disse Leonora Carrington). Não apenas subverte a ideia de quem deve ver e quem deve ser visto, mas também subverte a ideia patriarcal de quem deve ser forte e quem deve ser fraco. A musa, vestida ou despida, está exposta - está sujeita ao olhar do pintor. Alguém absorto ou deitado entre lençóis está vulnerável - o que não teria problema, mas como vivem presos numa masculinidade altamente tóxica muitos homens preferem o falecimento a serem vistos como vulneráveis...Ou em qualquer papel que eles associem a uma mulher.
(Eunice Golden, Landscape # 160. 1972)
Subverte a dinâmica de poder e controlo. Quem tem a pena ou os pincéis (ou a câmara) na mão tem o poder de transformar o mundo. De deixar expressos os seus pensamentos e visão em algo que continuará a ser consumido e a influenciar outros muitas décadas e séculos depois, que fará parte da paisagem cultural. Como os homens brancos tem tanto poder eles podem impedir que outros façam parte dessa paisagem e participem nessa transformação. Podem destruir, ignorar ou desmerecer as obras que não lhes interessam. É um ciclo opressivo em que o olho masculino cria visões para agradar a outros olhos igualmente masculinos.
(Meghan Howland, Title Unknown. 2001)
A mulher como musa é assim não só útil como mais importante: não representa ameaça. A grande maioria das vezes nem sequer tem nome, enquanto o do artista fica para a posteridade. Quando o olho da mulher tem uma carga erótica isso desafia a convenção de quem tem a liberdade de sentir desejo (e de quem tem a liberdade de expressar publicamente esse desejo) e quem não - outra coisa que é muito fácil de ver na literatura, na pintura...
Reflexo
Quando fica o reflexo
na janela
Nada mais que o espelho
desfocado
E eu te vejo estendido nos lençóis
e toco o teu corpo
nu
deitado
Quando a luz
se suspende ao pé dos ombros
Para logo se entornar e desviado
encontro o teu pulso e sem sentido
fico a pensar num rumor passado
À mistura com o cheiro
mais antigo
Do teu esperma doce
No meu joelho alado
(Maria Teresa Horta, As Palavras do Corpo)
Discute-se muito hoje em dia até que ponto os acontecimentos do Nineteen Eighty-Four estão a tornar-se reais: ter de escrever às escondidas de uma figura autoritária omnipresente...Mas se pensarmos bem, mulheres e pessoas não-brancas experienciam tudo isso na vida quotidiana. Todas temos um par de olhos sempre em cima de nós: a avaliar o nosso comportamento, a controlar o que dizemos, a arte que fazemos, a escrutinar o nosso corpo de alto a baixo...Desagradá-los tem consequências. Olhos que moldam o modo como vemos não só o mundo, mas também o modo como nos vemos a nós próprias e umas às outras. Devíamos espremer-lhes limão para cima.