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Desabafos Agridoces

"Enfim, bonito e estranho, desconfio que bonito porque estranho"

Desabafos Agridoces

"Enfim, bonito e estranho, desconfio que bonito porque estranho"

Sou mulher, logo sou assassinada

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Estava a fazer scroll por uma das páginas feministas que sigo e vi menção a três sites - Unconsenting Media: a search engine for sexual violence in broadcasting. Basta colocarem o nome de um filme ou série na pesquisa e o site diz-vos se esse conteúdo contém violência sexual, como se vê na imagem acima. Até vos informa em que episódios isso acontece. O Does The Dog Die: crowdsourced emotional spoilers for movies, tv, books and more. Tem imensas categorias incluindo jumpscares, morte de uma pessoa LGBT ou discurso de ódio. No Rotten Apples podem colocar o nome de um filme na pesquisa e ver se na sua direcção ou elenco esteve envolvido alguém acusado de mau comportamento sexual. Estas páginas ajudam uma pessoa a evitar cenas que possam provocar reacções de stress e deixaram-me a pensar na quantidade de violência que consumimos e que toleramos, real e ficcional.

 

O preenchimento de todos aqueles quesitos é uma das razões porque nunca me interessei por GOT. O meu objectivo na vida é ver menos violência e não mais, já basta tudo o que se vê nas notícias. E já fico angustiada o suficiente quando autoras escrevem sobre os abusos que sofreram - não preciso de ver tortura e abuso sexual glorificado, muito obrigada. A morte e o abuso de mulheres nos ecrãs é uma epidemia global com raízes profundas, ainda a televisão não tinha cor. A sua base é a misoginia. 

 

"Melissa Silverstein reiterates this sentiment in her essay “Hollywood’s Rape Culture is a Reflection of Our Culture,” writing, “rape is a device in TV and films with such regularity that we are almost immune to it… Movies are not just movies. They are touchstones, reflections of our culture of where we are, of who we all want to be.”

(tirado daqui)

 

" (...) critics of “Game of Thrones” fear that rape has become so pervasive in the drama that it is almost background noise: a routine and unshocking occurrence"

(tirado daqui)

 

[Não fazia ideia que alguém tinha questionado o autor sobre este detalhe - parece que sim: "Mr. Martin wrote that as an artist, he had an obligation to tell the truth about history and about human nature". A última vez que verifiquei isto era uma série de  fantasia...Ou andei enganada estes anos ou esta resposta não faz sentido.]

 

Às vezes estou a ver alguém a jogar uma coisa qualquer no Youtube e estou super interessada, mas depois penso: tipo, já não é para aí a sexta ou sétima vez que vemos esta moça a ser degolada? Em anos, já perdi a conta aos jogos que, além do sexismo (como fazer a personagem feminina ter que se molhar com uma camisa branca para se ver o soutien por baixo), começam ou acabam com o assassinato de uma mulher que depois é investigado por um detective ou pelo marido\namorado - que é assombrado pela memória\fantasma dela. Outra ideia de terror popular: fazer um crime ser cometido por uma pessoa com uma doença mental (esquizofrenia costuma ser a preferida, ou uma mistura de várias...). Ou atirar o jogador para um hospício. Quantas séries já vimos cujo enredo girava em torno de uma mulher morta?

 

She dies to provide a plot twist. She dies to develop the narrative (...) She dies because no one could think of what else to do with her (...) The woman dies so the man can be sad about it. She dies to give him a destiny. Dies so he can fall to the dark side. Dies so he can lament her death. As he stands there, brimming with grief (...) the woman lies there in silence. The woman dies for him. We watch it happen. We read about it happening."

 

(The Woman Dies, conto de Aoko Matsuda na revista Granta)

 

Quantos corpos femininos mutilados já vimos em glorioso HD? E que dizer dos livros? Ler sinopses de policiais ou thrillers é como entrar num loop de corpos femininos mortos - estão sempre a aparecer mais. Não contando com aqueles livros que já trazem a palavra mulher\rapariga e\ou partes de corpos de mulheres na capa...Que ninguém vá ao engano. E tão arrepiante quanto a frequência desta imagem, sou uma mulher, logo vou ser morta, é a brutalidade dos ataques. Não somos apenas violadas, mas esfaqueadas, decapitadas, desmembradas [desumanização total], degoladas, torturadas, disfiguradas...

 

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(capas de livros de crime vintage -  a segunda tirada daqui e a

outras daqui - podem ver mais clicando em ambos os links)

 

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(capas de thrillers recentes tiradas aleatoriamente da net)

 

Como leitores\espectadores não queremos um crime qualquer, simples. Queremos detalhe, requintes de sadismo. Um fluxo constante de dálias negras para nosso entretenimento. Uma coisa fundamental que temos de entender: todos os homens são ensinados a odiar as mulheres. Todos. Porque essa é a base do patriarcado. Mesmo que um homem não manifeste ódio através de ataques directos, pode fazê-lo através de conteúdos como estes - e disfarçar com o rótulo de arte ou liberdade criativa. Pode fazê-lo violando mulheres num jogo, transferindo assim o ódio para lugares mais cómodos. Pode fazê-lo de muitas maneiras, tristemente.

 

O corpo feminino é percepcionado como um mero objecto sexual, de consumo...Nos ecrãs existe para ser devorado pelos olhares masculinos (male gaze). Não é inocente a posição em que o corpo da mulher (vivo ou morto) é colocado, a posição das câmaras e para onde elas apontam. E muitas vezes nem o cenário onde o crime ocorre - pensemos na cena do chuveiro (que nos fornece bastante material de reflexão...). Começar uma série ou filme com o assassinato de uma mulher semi-nua na cama, depois de um momento de predatório voyeurismo, ou na rua a altas horas da noite - é um recurso de terror, mas também é um reflexo do mundo real. O corpo feminino é a imagem do pecado capital da vaidade e da luxúria. Vende, dá para preencher espaços narrativos - e agora uma cena aleatória de nudez! há um prazer patriarcal em expiá-lo, em dominá-lo...

 

Muitas mulheres absorvem esta ideia extremamente tóxica de si mesmas. Mas da nossa parte essa "luxúria" paga-se caro: as que usam livremente a sua sexualidade são punidas com extrema violência. Um exemplo: se vocês gostam de filmes de terror, especialmente slasher-movies, sabem de quem os psicopatas vão logo atrás. Das mulheres sexualmente activas. Das putas. Da loura, mamalhuda e pouco inteligente - mostra os peitos, dá uns ginchos, está fora de cena. As putas são as primeiras a morrer, muitas vezes durante o acto sexual ou logo depois dele. Não é coincidência, pelo contrário: reflecte a obsessão doentia da sociedade em controlar a nossa sexualidade e reprodução. E é uma mensagem de aviso para todas nós: isto é o que acontece se sairmos dos trilhos patriarcais. 

 

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(tirado daqui)

 

A grande maioria das pessoas reconhece que as histórias são poderosas. Que Influenciam as emoções, os pensamentos e moldam a nossa visão do mundo. Que há livros que influenciaram o pensamento humano. Há listas com eles - todo o cânone ocidental. Talvez sejam capazes de fazer listas de livros ou filmes que influenciaram a sua vida particular. Mas parece-me que há dificuldade em reconhecer essa influência quando os conteúdos são danosos para a imagem das mulheres - isso é descartado como mera má ficção, só um livro...Só que não é. Sites como os mencionados também nos ajudam a fazer escolhas de entretenimento mais éticas.

 

Vocês podem argumentar que um artista morto não vai beneficiar do dinheiro do bilhete que pagaram para entrar na exposição, ou algo do género. Mas não dá para argumentar isso em relação a quem está vivo - o que significa se vocês pagam bilhete para ir ao cinema ver filmes de certas pessoas ou se sentam na primeira fila dos seus shows? Estão a ser coniventes: continua a dizer umas piadas ou a produzir arte que nós esquecemos essa parte de atacar sexualmente outros seres humanos...Temos responsabilidade pelo que produzimos. E também pelas escolhas de consumo que fazemos.

E a lista aumenta...

Em continuação do post anterior: tenho de agradecer à Paula que me encaminhou para Silvia Federici, uma académica feminista ítalo-americana que se debruça sobre a caça às bruxas e a relação disso com a ascensão do capitalismo: 

 

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"(...) Silvia Federici argues that the witch hunts of the sixteenth- and seventeenth-centuries served to create and enforce a newly established role in society for women, who were consigned to unpaid reproductive labour to satisfy the needs of an ascendant capitalist order. Published in 2004 and based on a research project started in the 1970s with Italian feminist Leopoldina Fortunati, Federici draws upon an eclectic mix of historical sources, re-reading the transition to capitalism from a Marxist-feminist viewpoint."

(tirado daqui)

 

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"The world is witnessing a new surge of interpersonal and institutional violence against women, including new witch hunts. This surge of violence has occurred alongside an expansion of capitalist social relation. In this new work, Silvia Federici examines the root causes of these developments and outlines the consequences for the women affected and their communities."

(tirado do Goodreads)

 

Enquanto pesquisava encontrei também:

 

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(Encontrei nesta lista)

 

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A quantidade de possíveis boas leituras deixa-me um nadinha assoberbada, mas continuo a aceitar sugestões - pois de que serve andarmos aqui nisto dos blogs se não for para aumentarmos as wishlists umas das outras outras (e uns dos outros)...Agora vou voltar para o Ain't I a Woman da bell hooks.

Gostas de ler sobre o quê?

Não posso mentir: ontem à noite em vez de estar a dormir estava a pensar que preciso de arranjar um bom livro escrito por uma autora sobre as bruxas de Salém. Não tenho realmente uma wishlist, tive há muitos anos mas desisti quando ficou enorme e neste momento seria impraticável, em papel ou digital. Que poder é esse, de algumas pessoas conseguirem apresentar uma única página com os títulos que desejam...Não devem ser leitores assíduos. Eu quero sempre muita coisa. Às vezes não me apetece ler um livro específico, mas sim ler sobre um assunto. Seria uma óptima lista para apresentar a alguém, como o incauto funcionário de uma livraria: "por acaso não tem livros feministas que falem sobre menstruação?", "Sobre vaginas, do ponto de vista histórico e cultural, ou sobre o corpo feminino em geral?", "Sobre bruxas como figura anti-patriarcal?"

 

Pode parecer surpreendente, mas há livros sobre isto tudo. É preciso pensar fora dos cânones, do pensamento vigente e daquilo que ele diz que é ou não importante. Quem perderia tempo a escrever sobre a história das mulheres não casadas na América? E no entanto foi num livro sobre isso que tropecei não há muito tempo. Sobre o corpo feminino tenho por exemplo - Woman: an intimate geography. Ganhou o National Book Award, tem mais de 400 páginas. Sobre vaginas [o termo é uma simplificação, naturalmente refiro-me ao pacote completo]: The Vagina: a Literary Cultural History.

 

Períodos e Salém: não tenho, mas quero - Periods Gone Public, Jennifer Weiss-Wolf (também há livros sobre a história cultural da menstruação) e The Witches: Salem, 1692, Stacy Schiff (a mesma autora de Cleópatra e de um outro que também quero: Vera (Mrs. Vladimir Nabokov)). Ainda não encontrei uma boa biografia da Joana d'Arc (mas achei a da Marie Curie, escrita por uma das filhas). Há temas sobre os quais estou careca de ler ou de ouvir falar, mas quando os leio de uma prespectiva diferente: escrita por uma mulher, feminista, não branca..Isso revela coisas em que nunca tinha pensado. Eu sei: sou muita chata com isto, mas como podem ver é um empreendimento literário para a vida.

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Quem Escreve Aqui

Feminista * plus size * comenta uma variedade de assuntos e acha que tem gracinha * interesse particular em livros, História, doces e recentemente em filmes * talento: saber muitas músicas da Taylor Swift de cor * alergia ao pó e a fascistas * Blogger há mais de uma década * às vezes usa vernáculo * toda a gente é bem-vinda, menos se vierem aqui promover ódio e insultar, esses comentários serão eliminados * obrigada pela visita!

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