Livros, sexo e bruxas: uma reflexão
É curioso analisar o modo como as pessoas ao longo do tempo se têm vindo a referir a coisas naturais da vida: gravidez, sexo, menstruação...De certeza que já se fizeram estudos e se há livros sobre o assunto gostaria de os ler. Já contei aqui que uma das minhas expressões favoritas, pescada em livros vitorianos, é: a Mary está num estado interessante. Para dizer que a Mary está grávida. Se eu vivesse na altura ia sentir-me ofendida. Parece implicar que eu não seria interessante no resto do tempo. Há uma passagem no A Tree Grows in Brooklyn em que a protagonista comenta as diferenças entre grávidas:
"I guess that's why the Jews have so many babies," Francie thought. "(...) And why they aren't ashamed the way they are fat. Each one thinks that she might be making the real little Jesus. That's why they walk so proud when they're that way. Now the Irish women always look so ashamed. They know that they can never make a Jesus (...)
É possível compreender uma sociedade ou momento histórico através do corpo de uma mulher: o nosso cabelo, a nossa pele, até os nossos músculos registam o mundo...Como se fôssemos livros de História andantes. No Orlando, a dado capítulo entramos no século XIX: época vitoriana, muito repressiva. Isso transparece em todos os aspectos da vida - os géneros distanciam-se ainda mais, o discurso passa a estar cheio de evasões e dissimulações.
"Mas é verdade, senhora — perguntou a boa mulher, toda encolhida (...) que a rainha — bendita seja — está usando o que se chama uma — a boa mulher hesitou e corou. — Uma crinolina — ajudou Orlando"
Ou seja: a rainha estava prenhe (a crinolina era usada para esconder o facto). O vestuário impede mais do que nunca os movimentos das mulheres:
"Era o mais pesado e banal de todos os trajes que já usara. Nenhum lhe impedira tanto os movimentos. Não poderia mais passear pelos jardins com os seus cachorros (...) Seus músculos tinham perdido a flexibilidade. Ficou com medo de que houvesse ladrões atrás dos lambris, ou, pela primeira vez na vida, fantasmas nos corredores."
Infelizmente, o mundo em que vivemos ainda é muito desigual e racista e isso nota-se no que dizemos: provérbios, expressões populares, canções...Por estarem tão entranhadas no tecido social é difícil para muita gente entender que não são coisas inofensivas, mas coisas que normalizam a violência contra outros. De certeza que há canções melhores para cantar às crianças do que o Sebastião que come sem colher ou o gato que leva com o pau...
A sociedade patriarcal é hábil na manipulação do discurso, do modo como ouvimos e como avaliamos o que ouvimos - é ingénuo pensar que o género não tem influência nessa avaliação. Quando pensamos num discurso sério e assertivo, talvez numa assembleia ou num palanque perante uma multidão, qual é o género que associamos de imediato? E se pensarmos numa voz irritante?
Muita gente reclama da voz da Cristina Ferreira, mas poucas reclamam dos comentadores de futebol à volta de uma mesa a gritar e a insultarem-se. Acho isso mais do que irritante, é tóxico. Hábil na manipulação das palavras. No Monólogos da Vagina há um monólogo que consiste em repetir a palavra cunt varias vezes. Exige coragem fazer isso num palco. Mas a verdadeira origem da palavra é esta: "the Indo-European word cunt was derived from the goddess Kali’s title of Kunda or Cunti, and shares the same root as kin and country." Era uma palavra imbuída de iluminação e poder feminino. Spinster, gíria para solteirona, designava uma fiandeira. Agora servem de pedras de arremesso.
A palavra e o conceito de bruxa é outro exemplo. Geralmente nenhuma menina quer ser uma bruxa, isso significa ser má e feia - é o querem que acreditemos. Mas não há conceito mais anti-patriarcal: bruxas são independentes, vão onde lhes apetece, não são agradáveis à vista, elaboram planos, são ambiciosas...Já as princesas são eternamente desejáveis, sem defeitos, sempre a precisar de ajuda porque a acção é sempre algo que lhes acontece e nunca algo que elas provocam. As bruxas têm poder. Que insulto é muitas vezes atirado às mulheres na política? Exactamente. Elas têm poder e por isso devem arder. Que longa experiência temos disso, metafórica e literalmente. Isto também serve para nos separar: deste lado estão as falhadas, as loucas com a casa cheia de gatos, as putas...Sê boa menina para não acabares assim. Mas esta linha é uma ilusão.
Sempre achei graça aos romances em que uma moça não está grávida num capítulo e no outro já está, sem nada no meio. Sentia-me um bocado defraudada. Por exemplo, em todos os seus romances a Jane [Austen] interrompe a história no altar deixando espaço para especularmos sobre variadas coisas, nomeadamente as consideradas impróprias. No último livro que li, a amiga da protagonista pergunta-lhe se dormiu com um certo sujeito. Presumo eu, já que a pergunta foi feita timidamente...
"Oh, não, Regina, nunca! Pois tu cuidas que se tivéssemos transigido com o nosso desejo (...) se numa só hora de fraqueza as nossas vidas se entrelaçassem na comunhão absoluta das nossas existências (....) tínhamos ambos a certeza (...) que no momento em que a fatalidade do amor nos fizesse beber pela mesma taça o filtro de Iseu, a nossa carne, o nosso sangue, a nossa vida, não poderia mais ser dominadas pela própria vontade!"
Isto é que é classe! Acho que devia ser considerado sexy gemer em português arcaico. Em outro livro a protagonista diz ao seu par: que lhe apetecia fazer aquela coisa em que tinham prazer juntos. Achei adorável, embora não me pareça que seja algo que a grande maioria das mulheres no mundo possa dizer. A nossa protagonista era uma moça feliz. Pessoalmente, não gosto muito da expressão fazer amor quando é usada como eufemismo - porque há coisas que uma senhora não faz nem diz. Se escrevesse um livro colocava-lhe o título: as mulheres também fodem.