Depois de me ter apaixonado pelo The First-Hand Story of Young Lives Lived and Lost in World War II e de me ter resignado ao facto de ele não existir em lado nenhum que me seja acessível, agora estou apaixonada por este: Ravensbruck: Life and Death in Hitler's Concentration Camp for Women. Não é frequente que a história das mulheres seja considerada digna de ser contada e isto é uma densa investigação com mais de 700 páginas. Não que eu seja doida, mas sim: fiquei com vontade de me precipitar para a Fnac mais próxima. Só que depois vi que custava trinta euros e já não me precipitei. Dramas de um leitor, ou o livro a) não existe b) existe, mas têm primeiro que vender os vossos globos oculares no mercado negro c) já existiu no ano em que a Torre Eiffel foi construída e agora nada d) faz parte de uma série e) só o primeiro e (talvez) o segundo estão publicados. Numa nota mais positiva continuo a ler autoras e acabei Esta Distante Proximidade da Rebecca Solnit que trouxe da Feira do Livro. Se todos os que trouxe de lá forem como este sou uma leitora feliz. Eu podia apimentar este blog com outros assuntos, mas geralmente só me apetece escrever sobre livros e feminismo. É pena que os homens não olhem para estes dois temas como um convite ao amor. Se o meu príncipe encantado entrasse agora no meu quarto: primeiro iria tropeçar na bagunça, depois iria olhar para mim de pijama e peúgos a escrever um texto de mulherzinha com uma pilha de livros ao lado, iria suspirar e virar costas. Morada errada, amigo. Na verdade, penso muito em textos feministas enquanto lavo loiça...Ah, quando o coitado percebesse já seria tarde demais para fugir.
Há sempre quem seja mais desprendido, capaz de deixar casualmente um livro num banco de jardim, e quem seja mais possessivo. Eu não pertenço a este primeiro grupo e também não acredito em relações à distância. Gosto de ter livros. E gosto de os ter por perto. Nos primórdios a minha micro-biblioteca era ainda mais micro, só ocupava meia prateleira num móvel...Agora já demora uma tarde inteira a limpar e arrumar, se não houver muitas paragens para ler passagens. No fim é boa a sensação de os ver todos alinhados (mas sem nenhuma ordem de organização). Alguns dos que estão por ler ficam em cima (uns 46 no total). Claro que alguém pode dizer que bastaria comprar novos - é certo, mas não seria igual. Já não seria aquele livro que tem páginas todas enrugadas porque apanhou chuva naquele dia de Inverno no ano x, ou que ainda tem areia da praia do verão passado no sítio y, ou aquele que foi comprado numa lojinha que encontraram por acaso...É a mesma história, mas ao mesmo tempo não é. Vou sentimental no que toca às memórias que os livros podem guardar. E há aqueles que estão muito sublinhados e\ou têm anotações nas margens. E não, nunca haverá fotos suficientes da minha estante neste blog.
Quando um homem faz algo corajoso é costume dizer-se que tem uma certa parte do corpo de aço ou que os tem no sítio, esse tipo de expressões. Estão tão entranhadas que até as usamos quando nos referimos a mulheres. O nosso mundo é profundamente falocêntrico: o pénis é colocado num pedestal e toda a nossa vida deve girar em torno da sua satisfação - quer queiramos quer não. Todas nós já pagámos bilhete para ficar duas horas a assistir à cultura falocêntrica desfilar num ecrã de cinema. Está em todas as formas de entretenimento. Está nas leis e nos poderes de decisão. Há quem diga que é apenas coincidência quando num filme a câmara está constantemente apontada ao rabo da actriz. Não se enganem. Quando uma personagem feminina não é objectivada isso gera sempre protestos de alguns homens. Personagens femininas bem construídas e com relevância? Isso para eles mais que uma ofensa, é uma ameaça. Para esses homens não há nada que seja mais ofensivo que vocês não serem sexualmente desejáveis para eles. É o falocêntrismo no seu auge: “se eu não tiver vontade de te foder, a tua existência neste mundo não tem sentido“.
“Quando estou caminhando pela rua, homens se debruçam para fora da janela de seus carros e gritam coisas vulgares sobre o meu corpo, sobre como eles o veem e sobre o quanto ficam aborrecidos por eu não agradar seus olhares, suas preferências e desejos. Tento não levar esses homens a sério, porque o que eles estão realmente dizendo é: “Eu não me sinto atraído por você. Não quero transar com você, e isso confunde o meu entendimento de minha masculinidade, das coisas a que tenho direito e do meu lugar nesse mundo”.
(Hunger, Roxane Gay)
A verdade caro hipotético leitor é que o seu pénis não é assim tão importante. E não faz de si mais corajoso que uma mulher. Quem nasce com uma pilinha não é automaticamente mais inteligente e destemido. Muita gente acha que esses estudos que dizem que pessoas com determinado formato de nariz ou com olhos verdes são assim ou assado são uma tontice, não é do senso comum que existam pessoas de olho verdes que são irascíveis e outras que não são? E concordam que os estudos que dizem que a inteligência se mede pelo formato da cabeça são coisas do passado, então porque acreditam que um órgão define tudo na vida de uma pessoa...Todos nascem com um órgão reprodutor tal como se nasce com um coração, pulmões, rins...Mas género é uma construção social e cultural. São estas normas de género que vão proporcionar aos meninos muito mais oportunidades de desenvolver certos interesses e características de personalidade, criando um fosso enorme entre eles e elas. As meninas são menos incentivadas, quando não totalmente proibidas, de explorar o mundo.
O problema não é a nossa vagina. O problema é o modo como ela é percepcionada: como um defeito. No vocabulário popular não existem vaginas de aço, se vocês querem fazer algo épico tipo subir ao Evereste têm de superar esse defeito: têm de ser resolutas e determinadas, como um homem. Todas as características altamente valorizadas como a força, a perseverança, a honra são associadas ao pénis. E são muitas vezes usadas em contextos que se considera serem masculinos: futebol (garra, sede de ganhar, etc), descobertas (“graças à sua perseverança e resistência este valente grupo de exploradores conseguiu chegar ao Árctico”); duelos e guerras (no cinema o filão da camaradagem é explorado até à exaustão). Já a vagina é associada a tudo o que é negativo: fraqueza, falta de controlo e de coragem, falta de habilidade...Alguém está com medo? Está a ser pussy; está irritado? Está a agir como uma mulherzinha histérica; chuta mal? Está a jogar como uma menina...Personagens femininas como cientistas, jogadoras ou super-heroínas não são usadas como exemplo para os meninos.
Como se pode ver por tudo isto se não amarmos o nosso pipi ninguém neste mundo vai fazê-lo por nós. Nunca ouvi falar de um pénis que sangrasse todos os meses ou que tivesse expelido um ser humano completo e funcional. Mais:
“The clitoris is pure in purpose. It is the only organ in the body designed purely for pleasure. The clitoris is simply a bundle of nerves: 8,000 nerve fibers, to be precise. That’s a higher concentration of nerve fibers than is found anywhere else in the body, including the fingertips, lips, and tongue, and it is twice . . .twice . . . twice the number in the penis”
(The Vagina Monologues, Eve Ensler)
A sociedade misógina é brutal nos seus métodos para reprimir o prazer feminino: negação do direito ao conhecimento e à escolha; abuso psicológico e físico, mutilação...Enquanto o prazer masculino está sempre a intrometer-se no nosso caminho como um chihuahua irritante. Aceita-se que um homem satisfaça as suas “necessidades” a qualquer custo (com pressão social para os que não aderirem a esse modelo de comportamento). O prazer feminino é sempre considerado secundário e opcional...E é claro: é sempre nossa culpa. Tudo mentiras usadas para que acreditemos que a nossa vagina é um defeito e para esconder a incompetência...
Feminista * plus size * comenta uma variedade de assuntos e acha que tem gracinha * interesse particular em livros, História, doces e recentemente em filmes * talento: saber muitas músicas da Taylor Swift de cor * alergia ao pó e a fascistas * Blogger há mais de uma década * às vezes usa vernáculo * toda a gente é bem-vinda, menos se vierem aqui promover ódio e insultar, esses comentários serão eliminados * obrigada pela visita!
Subscrever por e-mail
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.