A Justiça é uma máquina trituradora
A propósito do Dia da Mulher voltei-me a lembrar deste fenómeno muito comum: feminismo amigável. Quando uma pessoa quer escrever sobre igualdade mas não quer ofender...Ou passar a imagem de uma mulher histérica ou raivosa - e por isso se atira tantas vezes a palavra feminismo para debaixo do tapete: substituindo por mais "diplomáticos" e "agradáveis" termos; escrevendo textos que dão tais voltas parece que a pessoa está perdida no labirinto de Creta; fazendo ressalvas a cada três linhas ou parágrafos introdutórios para que se saiba absolutamente, sem sombra de dúvida e com atestado de psiquiatra que se trata de uma fêmea equilibrada.
Este conceito de feminismo amigável não faz sentido. Mesmo que ninguém escreva a primeiríssima coisa que lhe venha à cabeça, se vamos escrever sobre feminismo que o façamos sem rodeios. Em primeiro lugar porque de outro modo é perda de tempo. Vai haver sempre alguém a sentir-se ofendido, não importa as voltas que dêem. Em segundo quando isso acontece o problema não é vosso. Em terceiro, esta sociedade não gosta quando se fala de igualdade por isso andarem a pedir desculpa por falarem sobre isso ou sentirem que têm de se justificar, quando é tão legítimo indignarem-se com tanta desigualdade - é o que esta sociedade quer. Não é preciso muito para uma mulher ser vista como histérica, raivosa ou exagerada basta ter mais sentimentos que uma jarra decorativa. E falar mais do que uma. Lembrem-se que esta é a mesma sociedade que diz que vocês nasceram para cozinhar, serem fodidas e parirem. O que nos leva ao quarto motivo: usar paninhos quentes para falar de uma sociedade que vos vê desta maneira?
Muitas vezes tenho vontade de imprimir passagens que leio sobre igualdade e distribuí-las por aí, pois fico perplexa com a dificuldade de algumas pessoas em perceber coisas tão básicas - como o facto de não sermos jarras decorativas. A algumas eu gostaria de atirar um sapato. A existência de predadores sexuais já é horrível por si só, mas vemos a profundidade do problema quando hordas de defensores começam a sair do pântano. Defender um violador é tão fácil e ainda passamos por corajosos contra a corrente, especialmente se falarmos na importância da "liberdade de expressão" e da "arte". Cada vez que alguém começa um texto com: "porque é que elas só decidiram falar agora" ou "porque é que elas não fizeram nada antes", isso é descredibilizar as vítimas e desviar a atenção do agressor - é ficar ao lado do agressor. Não importa quão modernos e boas pessoas vocês se possam achar: é este tipo de pensamento que permite que estes predadores continuem a ficar impunes.
"Hoje em dia já nem se pode tocar..."; "será que também vão proibir o sexo?"; "porque parecem as mulheres terem medo de sexo?!"...Fico a imaginar se estas pessoas estivessem frente a frente com uma mulher violada aos onze anos por dez tipos que acabaram ilibados, teriam coragem de dizer tais coisas. Claro que para alguns tudo isto é um complô do politicamente correto. Eu seria politicamente correta se dissesse, digamos que é triste que o Nobel da Literatura possa não ser entregue este ano por causa dos escândalos de abuso, um prémio tão nobre e importante...Mas não vou dizer isso. Que se dane. Quando é que estes prémios foram alguma vez justos connosco? Ou se parasse para analisar o que realizadores\actores dizem em defesa de outros. É expectável: não querem que as suas cabeças rolem também. E não querem ficar sem os seus brinquedos preferidos...Monstros defendem monstros.
Um conhecido autor escreveu: "Garotas comuns normalmente se preocupam muito mais em saber o que é bonito e como podem ser felizes do que com a questão de alguma coisa ser justa. “Justiça” é, sem dúvida, uma palavra de uso exclusivo masculino". Como garota comum que sou, não candidata a um Nobel, temo que este pensamento seja demasiado profundo para conseguir analisar. De facto, um conceito de justiça que desumaniza e humilha brutalmente um ser humano - que diz a uma mulher, uma menina, que é uma puta sedenta de dinheiro e que não só é culpada pelo que aconteceu como gostou de ser fodida à força, parece um conceito de justiça de "uso exclusivo masculino" que não nos deve interessar. Não feito para nos proteger - é por isso que precisamos de um novo.