Doenças mentais: olha-se, mas não se vê
Há coisas que me dão vontade de atirar livros para a sarjeta. Por exemplo: romantização de abusos sexuais e violência, assunto já abordado recentemente aqui, e uso de estereótipos para falar de doenças mentais. Concentremo-nos nesta última e no caso de um livro YA que tentei ler algures o mês passado. Uma história entre um miúdo que aparentava ter algo dentro do espectro autista e uma miúda esquizofrénica...Um combo explosivo: ele é um idiota sabe tudo que não dá a mínima para os sentimentos de ninguém e ela parece sempre à beira de ter um ataque e pegar numa faca. Às tantas descobrimos que a mãe de um deles está num hospício.
Já é mau quando alguém fala de algo sem conhecimento, mas passar isso para um livro para ser lido por muita gente (incluindo jovens) é ainda pior. Se vocês estão a escrever uma obra e por alguma razão decidem que a vossa personagem será um botânico - se os factos estiverem incorrectos podemos dizer que vocês falharam na parte da pesquisa. Mas inserir um problema mental na narrativa com base em ideias feitas (como a de que todas as pessoas no espectro autista são misantropas geniais) pode prejudicar pessoas reais que já lidam com muitas dificuldades e não precisam que alguém ajude a perpetuar estereótipos e a aumentar ainda mais o estigma. É literalmente pegar nas características mais sensacionalistas de uma doença mental e usá-las para suportar uma narrativa. Mais útil seria abrirem uma empresa de limpar janelas...
"One of the things that baffles me (and there are quite a few) is how there can be so much lingering stigma with regards to mental illness, specifically bipolar disorder. In my opinion, living with manic depression takes a tremendous amount of balls. Not unlike a tour of duty in Afghanistan (though the bombs and bullets, in this case, come from the inside)"
Depois há a diabolização: seguindo canais no Youtube por uns poucos de anos dei com tantos jogos de terror passados em asilos ou cujos protagonistas eram depressivos\ esquizofrénicos\sofriam de stress pós-traumático\tudo isto junto e onde isso era o motivo do crime, que se recebesse um euro por cada já estaria rica. Claro que vocês podem dizer que ninguém vai jogar\ver um jogo destes e pensar "puxa, não sabia que nos hospitais psiquiátricos as pessoas batiam com as cabeças contra as paredes e se entusiasmavam a olhar para pilhas de cadáveres". Mas é a imediata associação entre a doença mental e o mal que é o problema. Li isto algures e está certo: instituições psiquiátricas não deviam ser cenário para o terror. Faz-me lembrar aquelas cenas nas telenovelas quando as protagonistas são fechadas à força em "clínicas" onde lhes injectam coisas. Uma estupidez. Depois de largar o tal YA fui ler Furiously Happy: A Funny Book About Horrible Things da Jenny Lawson
Um conjunto de textos onde ela fala dos seus distúrbios mentais e como foi aprendendo a viver com eles. Gostei. O ano passado li Depois a Louca Sou Eu da Tati Bernardi e o Wishful Drinking da Carrie Fisher e também gostei de ambos. Abordam outros dois problemas: não se levar a doença mental a sério. Coisas como - "estás triste porque é aquela altura do mês", "porque é Inverno", "porque entornaste o pacote do leite"..."Sai de casa e anima-te". "Pára de ser mimado(a)". No fundo como se a culpa fosse vossa. Além disso as doenças mentais não geram empatia. Se vocês partirem uma perna as pessoas olham e entendem; se tiverem um cancro a tendência é elogiarem a vossa força. O que é certo, pois lutaram contra algo terrível...Mas ninguém vos vai parabenizar por lutarem todos os dias contra uma depressão crónica:
"Quando alguém que sofre de câncer luta, se recupera e entra em remissão, elogiamos sua bravura (...) Quando alguém que sofre de depressão luta, se recupera e entra em remissão, raramente tomamos conhecimento, pois muitos sofrem em segredo (...) Espero um dia viver num mundo em que a luta particular pela estabilidade mental seja vista com orgulho (...) em vez de vergonha"
O Furiously Happy é um livro capaz de arrancar gargalhadas. Não temos como segurar o riso quando ela fala de coisas como os guaxinins empalhados ou das discussões que tem com o marido. Mas há ali também muitos dias negros e muita luta para voltar à superfície. Quando alguém decide falar disto abertamente está a ajudar a derrubar tabus e a levar outras pessoas a fazer o mesmo. A contarem as suas experiências. Também é muito importante a experiência no feminino: no Depois a Louca Sou Eu, Tati tem um texto em que fala do efeito que os antidepressivos tiveram na sua libido. Se podia eu encontrar um artigo de um especialista sobre o assunto? Podia. Mas prefiro que seja uma mulher que já passou por isso a contar. Por acaso o último livro que li também era um conjunto de textos que a autora, Ana Cássia Rebelo, foi publicando no seu blog com o mesmo nome: Ana de Amsterdam. Entre outras coisas fala de depressão. É cru, honesto e está belamente escrito.
"Não sei o que fazer com a tristeza quando ela toma conta de mim. Não a convido. Não sei porque vem, derramando tentáculos de dor. Sinto-a fisicamente, como se fosse um bicho, um parasita"
De facto, estes tabus são tanto mais estranhos se pensarmos que o famoso manual de transtornos mentais deve ter para aí umas 900 páginas. É demasiada gente fodida da cabeça para se ignorar...