Cavalheiros e damas - algumas reflexões
O cavalheirismo é um conceito que se baseia em ideias sexistas - toda uma vida a suspirar por um gentil príncipe para acabar nesta conclusão. Tristíssimo. Outro dia li um texto algures: uma rapariga contava o que tinha acontecido quando foi fazer um voluntariado qualquer que implicava manipular ferramentas e carregar caixotes. Assim que ela ia para pegar num materializavam-se ao seu lado dois ou três tipos prontos a tirar-lhe o peso das mãos. Fofinho. Em teoria. Ora, por acaso essa ajuda foi pedida? Se eu vir uma velinha a passar ao lado de uma estrada não vou chegar lá e puxá-la à força para atravessar sem dizer mais nada e sem perguntar antes. Notem que a rapariga ainda nem tinha pegado na caixa. Nem teve hipótese. Porque eles viram uma mulher naquela situação e pensaram de imediato que ela ia precisar de ajuda. A ideia de ser cavalheiro é baseada nisto: quero ajudar porque acho que é mais frágil do que eu. É um tipo de "ajuda" forçada e que impede a outra parte de se expressar.
Reforça da ideia do macho alfa e da fêmea submissa. Há uma conotação de superioridade na ideia de que as mulheres precisam ser “defendidas e reverenciadas” por serem mulheres. Isso me faz pensar em cavalheirismo, e a premissa do cavalheirismo é a fragilidade feminina - citando a Chimamanda de novo. O cavalheirismo tende a resvalar para a complacência: não tens capacidade mental e física para ser tratada como igual a mim. No The Yellow Paper da Charlotte Gilman a personagem está com uma forte depressão. Em nenhum momento o marido é bruto. O que ele faz é minimizar e infantilizar tudo o que a esposa diz - uma forma de manipulação machista subtil que é muito comum. Quanto mais me infantilizas menos os outros me vão levar a sério. Nos livros clássicos há sempre aquele cavalheiro que gentilmente acompanha as damas para fora da sala para elas não se aborrecerem com a "conversa de homens" que se vai seguir...A não aceitação da ajuda implica uma sanção: a rapariga depois de dizer que não precisava de ajuda foi olhada de lado pelos colegas e rotulada de "muito independente". Uma recusa destas é recusar o papel tradicional de fêmea sempre sorridente e grata por qualquer atenção.
Todos gostamos de ser valorizados pelo nosso trabalho. E de provar a nossa capacidade. Parece tão legítimo. Uma forma simples de detectar se uma situação é sexista é fazer a inversão dos papéis: posso materializar-me ao pé de um tipo e dizer-lhe que me deixe a mim levar a caixa? Ou posso parar para ajudar um senhor com uma avaria? Acho que muitos senhores neste mundo preferiam atirar-se para a estrada e ser atropelados do que passar por isso. Ser defendido por ti? Imaginem o que as pessoas iam dizer se vissem...Isto significa que ser cavalheiro só funciona numa direcção. Porque haveríamos de aceitar "ajudas" que no sentido inverso são consideradas humilhantes? É assim que se vê que a maioria das histórias tradicionais têm um fundo sexista: não haveria mal em a fêmea ficar na torre e ser salva, excepto que nunca ninguém viu o contrário acontecer. Não é tipo: eu salvo-te e tu salvas-me e depois eu salvo-te outra vez porque somos seres humanos e cometemos erros e ficamos magoados. A nossa sociedade não gosta nada desta ideia. Quando estas gentilizas só servem para disfarçar outras ideias acho que é melhor sermos nós mesmas a puxar a cadeira...