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Desabafos Agridoces

"Enfim, bonito e estranho, desconfio que bonito porque estranho"

Desabafos Agridoces

"Enfim, bonito e estranho, desconfio que bonito porque estranho"

Feminismo na cozinha e na casa de banho

1. Há anos encontrei num blog ou site, já não sei, uma fotografia que mostrava um grupo feminista em protesto com a parte de cima a descoberto e bem lá atrás via-se o que parecia ser uma figura masculina a empurrar um carrinho de bebé. O comentário à foto era que este homem estava a fazer mais pela igualdade do que aquelas mulheres...Na altura fiquei confusa. Agora penso em tudo o que precisámos de fazer e de passar: espancamentos, prisões, alimentação forçada, ficarmos amarradas a grades, morrermos à frente de cavalos, queimar roupa, usar gorros cor-de-rosa...E pelos vistos nada disso tem valor perante um homem a cumprir a sua obrigação básica como pai. 

É humilhante para nós mas ironicamente também para os homens, não será? Não é humilhante que o padrão seja tão baixo que frases como "eu costumo mudar as  fraldas ao meu filho" ou "nunca bati na minha mulher" se tornam dignas de prémio? Não é um flex. Mas é fácil e confortável, isso é certo...

 

***

 

2. Tenho andado à procura de novas receitas para deixar o menu semanal menos aborrecido e mais saudável embora por alguma razão acabe sempre com zero receitas de salada e pelo menos duas de lasanha...Poder-se-ia pensar que uma feminista não teria nada para se queixar na sua busca por uma receita de bifinhos. Mas tenho o hábito de ler o que as pessoas escrevem antes da receita - porque será que tantos destes textos são um lamento da mulher sobrecarregada? "Hoje cheguei tarde do trabalho - roupa para passar, crianças para dar banho, varrer, lavar as janelas, ir à lua...Sabem como é, não é? Aqui está a massa que improvisei para o jantar:"

Há quem vá mais pela via sociológica: "é verdade que nós mulheres temos uma vida stressante com emprego, casa, família então hoje venho partilhar esta receita muito prática" ou pela via mais íntima: "pois é uma moça chega a casa vê que se esqueceu de tirar algo para o jantar e o marido tá ali cheio de fome, já vos aconteceu queridas leitoras?" O marido é uma figura meio nublosa, por vezes um pouco exigente: "fiz esta receita de pescada porque o meu marido não come peixe com espinhas" Será aquele rapaz do anúncio do pão de forma? Também não sou apreciadora, mas eu não sou o sexo forte.

O meu preferido no entanto é um que dizia algo como: "vejam lá, comprei x para o jantar e depois o marido disse que não queria e os miúdos também não queriam e eu disse-lhes que estava a perder a paciência e daqui a nada atirava tudo pela janela, ah este meu feitiozinho..." Pontos a esta senhora pela honestidade. E pela receita de croquetes - que não eram o plano inicial dela. Claro que chegados aqui vocês podem apontar que nada nestes posts indica que o parceiro não faz qualquer tarefa em casa. É verdade, em muitos casos fazem. Bem...Em alguns casos

 

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("Cerca de 90% dos homens inquiridos num estudo sentem que partilham responsabilidades pelas tarefas de cuidado em casa, mas apenas 61% das mulheres sentem isso, concluiu um relatório sobre parentalidade do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra")

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( "(...) Os dados revelam, portanto, que enquanto, para o homem, ser pai resulta num reforço dos rendimentos — é a chamada “vantagem da paternidade” –, para a mulher, ser mãe equivale a mais responsabilidades familiares, mais interrupções na carreira e, à boleia, maior desvantagem salarial (...)")

 

***

 

3. Quando era nova a minha única queixa relativamente a casas de banho públicas era a falta de um cabide em muitas delas. Agora penso que deviam existir sítios para mudar os bebés em ambos os wc e que deviam estar disponíveis produtos menstruais de graça também em ambos...Quantas mais vezes vamos falar em casas de banho inclusivas só para o assunto morrer a um canto cinco minutos depois?

 

***

 

4. Assuntos feministas não me interessavam quando era nova e depois passei a achar que não era como as outras raparigas. Eu era cringe. Mas algumas coisas já me deixavam um pouco perplexa. Então existe uma mente masculina e uma feminina ok, não há problema - não sei fazer uma equação, posso ser irracional e quando há anos recebi um telemóvel não prestei muita atenção aos detalhes técnicos porque estava demasiada entusiasmada com o facto de ser cor de rosa choque e ter flores. Mas depois em concursos de televisão diz-se: "há quanto tempo estão casados? É melhor perguntar à esposa, elas sabem sempre estas coisas" - não me vou lembrar da vossa data de aniversário e não é por não gostar de vocês, mal me consigo lembrar da minha.

Não era suposto as mulheres serem péssimas com números? Outro dia em qualquer lado - "se a sua esposa disser que não quer receber um presente, vá comprar". Se me disserem que não querem um presente, eu não vou comprar. Suponho que então sou um homem? Ou é o meu cérebro no espectro? E algumas pessoas ficam chocadas por verem que outras não se encaixam no sistema binário. Fico mais chocada com o facto de que a última vez que encontrei uma review do livro as mulheres são de Vénus e os homens de Marte não foi há dez anos, mas sim há apenas uns poucos meses.

Como tudo o que advém de vivermos uma sociedade patriarcal, esta diferença entre mentes, do que constitui os dois géneros, parece ser puramente arbitrária e com o único intento de beneficiar uma das partes que fica livre do esforço de entender e compreender os outros (empatia é coisa de mulheres) e tem sempre desculpa para se esquecer de comprar o fiambre. Sem sustentação biológica (se eu fosse a biologia colocaria um processo por toda a estupidez proferida em meu nome e partiria num cruzeiro) nem sentido na vida real. Nem sustentação cultural\histórica - é suposto ficarmos em casa porque era isso que as nossos ancestrais faziam, ficar na caverna...Ou elas não ficavam lá?

 

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(Partilhei esta notícia com leitora Júnior e por graça perguntei se na escola ainda ensinavam que os homens caçavam e as mulheres colhiam fruta...Resposta: "sim, e que elas faziam cestinhas")

 

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(Olhem para esta juventude a desafiar as normas biológicas - ou simplesmente a seguir normas culturais, algo que não está no cérebro mas é construído, próprias da sua época e que mais tarde sofreriam uma mudança - mais sobre este tópico aqui e aqui)

 

***

 

5. Virei uma feminista previsível. Gosto de luas, de serpentes e de bruxas, de figuras femininas da mitologia: Medusa, Lilith e Hecate...E de ilustrações como as da María Hesse, com as suas mulheres rodeadas de flores

 

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Espero que nudez não seja incómodo para ninguém, se for estão no blog errado porque há mais fotos\ilustrações de mulheres destapadas flutuando por aqui. Mas outro dia estava a pensar se não haverá aqui um perigo subjacente - sim, há quem use o nosso "místico poder vaginal" para vender merdas ou tentar engrupir gente para coisas poucas claras, mas para lá dessa questão - vamos pensar no Memorial do Convento, por exemplo. Será que fazia sentido alterar o papel das personagens? Penso que a maioria das pessoas que de facto leram o livro diria que não tem como ser o nosso maneta a carregar aquela carga mística. Tem de ser Blimunda - a falar da vida e da morte ao pé das estátuas dos santos, porque na barriga da mãe já tinha os olhos abertos e via tudo, e a ter a tarefa de recolher as vontades que vão colocar o engenho a voar. A fantástica bruxa saramaguiana como dizia num artigo. 

Em O Dia dos Prodígios da Lídia Jorge também existe personagem feminina especialmente mística, presa pelo marido em casa a abordar uma colcha com um dragão e que começa a ver com os olhos fechados - Branca. Mais um nome simbólico. É interessante porque ao mesmo tempo sempre fomos retratadas como seres carnais cheios de paixões irracionais que precisam de ser controladas...Amo estas duas obras fortemente. Há uma sensação de empoderamento nestes símbolos e figuras, não surpreende que agora se encontrem tantos livros que resgatam as personagens femininas da mitologia do enquadramento patriarcal. Por outro lado penso se tal não pode virar-se um pouco contra nós e reforçar a ideia de que homens e mulheres vieram de planetas diferentes e outros estereótipos, afundando-nos ainda mais neste fosso binário.

 

***

 

6. O modo como se encara o assunto da desigualdade de género nunca cessa de espantar. Para já não me lembro de outro crime que tão prontamente seja desvalorizado e desculpado, outra conversa que tão depressa seja sabotada, mais depressa se aterra em Vénus de que se mantém uma conversa sobre desigualdade sem que alguém pergunte porque não estamos a falar dos homens, a misandria não tem limites hoje em dia realmente. Depois há o: se não me aconteceu não existe. Normalmente uma pessoa não precisa de passar por algo para empatizar certo? Se o senhor Arlindo foi atropelado e o condutor fugiu eu em princípio não preciso de passar pelo mesmo para ficar revoltada com o sucedido.

Também tende a acontecer com as doenças mentais - "é uma coisa moderna que inventaram agora e que não existia se as pessoas fizessem mais exercício físico e dessem umas palmadas nos miúdos para ficarem quietos". Outro dia vi o seguinte comentário: rapariga entra para um curso tradicionalmente masculino, estava com receio de como ia ser tratada mas aparentemente depois correu tudo bem. Então achou melhor parar de ler textos feministas para não ficar "negativamente influenciada". Devia ter guardado isto para partilhar porque é de facto bizarro.

Esses textos alertam para problemas que existem. Eu posso não querer ver uma reportagem sobre o tratamento dos frangos nos aviários e continuar a jantar sossegada, mas o problema é meu não da peça que está a falar de um problema real e documentado. Só porque correu tudo bem não vou ignorar aquelas para quem não foi assim - é como aqueles comentários: "eu nunca faria tal coisa a uma mulher", parabéns por isso senhor Arlindo mas o mundo não se restringe à sua existência. Como é que alguém vai defender os seus direitos sem conhecimento? E perceber a importância desses direitos se não ouvir? A constante necessidade de provar que existimos e que a nossa experiência é real...

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(Red Flag, Judy Chicago. 1971)

 

Já terminei Period. End of Sentence. de Anita Diamant, uma colecção de ensaios que abordam o estigma da menstruação e a injustiça menstrual. Algumas partes são de dar a volta ao estômago e não é pela menção ao sangue, mas sim de ler como a vergonha desgasta a auto-estima das raparigas e lhes corta as oportunidades. Em países ditos desenvolvidos raparigas continuam a faltar à escola quando estão com o período, por exemplo nos Estados Unidos pessoas que dependem de ajudas do governo não podem usar esse benefício para comprar produtos para o período, itens que são pouco doados e que são muito caros também devido ao chamado tampon tax ("a value-added tax or sales tax charged on tampons and other feminine hygiene products while other products considered basic necessities are granted tax exemption status")

E que também não estão disponíveis gratuitamente em locais de trabalho e escolas. Num hospital de Wuhan, nos primeiros dias do Covid, o pessoal médico feminino ficou sem produtos para o período e quando os requisitaram aos seus supervisores o pedido foi negado com a resposta que elas deviam lidar com isso elas próprias...A história foi contada por uma enfermeira de vinte e um anos e resultou em centenas de doações - "Some hospital administrators turned away the donations, either unaware or dismissive of the need. Eventually, the supplies arrived, but not before the story was widely reported."

 

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(Foto de Rupi Kaur, tirada pela sua irmã em 2015 como parte de um projecto universitário. Foi removida duas vezes pelo Instagram, alegadamente por violar os termos da plataforma.

 "(...) I will not apologize for not feeding the ego and pride of misogynist society that will have my body in underwear but not be okay with a small leak when your pages are filled with countless photos/accounts where women (so many who are underage) are objectified, pornified and treated less than human.")

 

A vida já é difícil mas se além de não existir uma educação sexual adequada [pausa para falar da minha memória da única aula de educação sexual de que me lembro, nem sei como acabamos nessa aula e penso ter sido uma iniciativa de uma docente só. Ela tentou ensinar-nos a colocar um preservativo - não numa banana - e quando um colega quis impressionar a namorada com o seu conhecimento das partes da genitália feminina foi um desaire.

O que aprendem os jovens hoje em dia?] e acesso a produtos de higiene, também não existir acesso a cuidados de saúde, água corrente e privacidade, a menstruação torna-se um inferno para milhões de mulheres e meninas que são forçadas abandonar a escola e que chegam a tirar a própria vida com a vergonha de terem manchado a roupa. Em alguns lugares as mulheres não podem entrar nos templos ou sequer ficar na casa de família durante o período.

 

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(Lyla Freechild, ilustração feita com tinta e sangue menstrual. Encontrada aqui)

 

(Casey Jenkins, Casting Off My Womb)

 

O livro foi inspirado no documentário com o mesmo nome (e já vi e gostei muito - está disponível no Youtube) produzido pelo The Pad Project, uma ONG cuja missão é acabar com o estigma e emponderar pessoas que menstruam ao redor do mundo. O filme mostra as dificuldades que todos os meses enfrentam as mulheres de uma pequena aldeia indiana e como as coisas começam a mudar quando é ali instalada uma máquina que permite que elas próprias fabriquem pensos.

Há no livro ensaios focados na menstruação no contexto de trabalho, no contexto prisional, no impacto ambiental e no factor racial, entre outros. É uma luta que tem muitas frentes...A autora fala também de como algumas culturas celebram a primeira menstruação e de como algumas pessoas estão a criar as suas próprias celebrações além de dar muitos exemplos de activismo seja na arte, na comédia, na criação de novos produtos, em campanhas [depois de a direcção de uma escola ter recusado colocar tampões grátis nas casas de banho um grupo de alunas decidiu protestar fazendo bolachas em forma de tampõesem trinta anos só uma vez vi um dispensador e era a pagar.]

 

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(Carolee Schneemann’s  [1939-2019] Blood Work Diary, made during one of her periods in 1972, was created by drying blood on tissue paper with the help of egg yolk to keep the blood set in place. Schneemann’s inspiration for this work was partly homage and partly lament to the hypermasculinity of one of her former lovers (...) he once felt sick while they were having sex because he witnessed a drop of period blood. “The whole masculine trope is to blow up bodies and eviscerate them and pound them into the earth. The whole language of Vietnam was about pulverising bodies and then the contradiction of this modest amount of menstrual blood carrying this immense taboo”)

 

Também acabei Fruit of Knowledge: The Vulva vs. The Patriarchy da cartoonista sueca Liv Strömquist. Fui logo conquistada pelo primeiro segmento que fala de um grande problema - é que enquanto por um lado temos a sexualidade feminina coberta em vergonha e invisibilidade por outro temos homens que se preocupam excessivamente com o assunto, com funestas consequências e ela apresenta uma lista com vários exemplos [aqui está algo para pensar da próxima vez que comerem os famosos cereais de pequeno-almoço: o seu criador propôs que as senhoras colocassem fenol no clitóris. E este é só o primeiro nome da lista.]

 

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(Sarah Maple, Menstruate with Pride. 2010-11. Encontrado aqui)

 

A seguir vêm três segmentos, um fala da menstruação: porque será que os anúncios a produtos para o período sempre usam palavras como protecção, segurança e frescura? Quanto tempo de vida perdemos a tentar que ninguém note nada? No fundo tudo gira em torno disto: não é se vocês estão bem ou mal, mas se os outros, especialmente os homens, ficam a saber. E assim bolsinhas insuspeitas continuam a atravessar corredores...Não estará ultrapassado o conceito de que se queremos igualdade temos de fingir que nada se está a passar?

Outro sobre a misteriosa ausência da vulva na representação das figuras femininas e a confusão entre os termos vagina e vulva - um exemplo disso são as imagens de um homem e de uma mulher que a NASA mandou para o espaço em 1972 na sonda Pioneer. A figura masculina tinha um órgão genital mas a mulher não (o desenho inicialmente tinha uma linha indicando a vulva, mas essa versão não foi aprovada...) A subtracção das nossas partes externas e visíveis convenientemente reduz-nos a um mero buraco à espera de ser penetrado. E um segmento sobre a ausência também misteriosa de menções ao clitóris e de estudos sobre a sua anatomia e a maneira muito diferente como é descrito o prazer masculino e o prazer feminino.

 

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(Frances Cannon, Monsoon Season. Encontrada aqui)

 

Algo interessante é que a autora mostra como as pessoas que existiram antes de nós tinham ideias bem diferentes sobre estas coisas - elas não tinham problemas em esculpir vulvas! Ou seja muitas ideias misóginas que carregamos hoje e que muitos argumentam serem naturais e da biologia, são na verdade construções culturais recentes. Um livro informativo escrito com sentido de humor, só tenho pena que tanto um título como o outro não sejam maiores. Entretanto nota-se que tive um tempo bem passado a pesquisar sobre menstruação na arte.

Cantar o corpo em perigo

Dei por mim a lembrar-me disto: uma vez escrevi num texto que todos os homens são ensinados a odiar as mulheres e houve alguém que não gostou. Ainda acho isso. Mas não estou a sugerir que os vossos companheiros ou filhos estão apenas à espera de uma oportunidade para vos espetarem uma faca nas costas como nos Idos de Março. Estava a referir-me ao facto de crescerem rodeados pela ideia de que as mulheres são coisas sem grande valor: as raparigas são nojentas, falam muito, fazem coisas sem sentido, são instáveis, não têm força, nasceram para se adornarem e tomarem conta de bebés...

Um dos documentários que vi recentemente mostrava que apesar da escravidão ter sido abolida nos Estados Unidos, continuou a existir apenas metamorfoseada em outra coisa e quando essa coisa também deixou de ser aceitável metamorfoseou-se de novo. De certo modo acontece o mesmo com as mulheres. Se não é mais aceitável queimá-las vivas, ou fechá-las em hospitais psiquiátricos ou impedí-las de votar ou de entrarem para uma universidade ou de fazerem um aborto - qualquer outra coisa se vai arranjar: “Systems of oppression are durable, and they tend to reinvent themselves.” 

Muita gente acaba por ter a sensação de que avançamos pouco pois por cada avanço e cada direito conquistado (e não concedido) o contra ataque é enorme. É naive achar que estas ideias misóginas não se vão entranhar (o mesmo acontece com o racismo e a homofobia). Quando ando a pesquisar filmes nem sempre é imediatamente perceptível se a pessoa que realizou é uma mulher - porque não sei se o nome é masculino ou feminino ou o texto tem no início uma imagem do filme. E percebi que até essas pequenas imagens me estavam a activar os estereótipos de género interiorizados, sobre o tipo de filme que é suposto uma mulher e um homem realizarem. 

Mesmo que um tipo seja decente a crua realidade é que ainda assim estará a beneficiar deste sistema de desigualdade - do facto de ganharmos menos e sermos mais afectadas em alturas de crise, por exemplo. Esta realizadora não estará a competir com vocês por um Óscar porque ela foi destruída por homens menos decentes e abandonou a indústria, esta cientista não estará na lista de candidatos aos Prémios Nobel porque o ambiente era tão hostil que ela acabou por escolher outra carreira, esta mulher de negócios não chegará a ceo porque a pressão de conjugar trabalho, filhos e casa sem ajuda foi demais. Esta rapariga nunca chegará a ser médica ou artista porque foi humilhada na escola por estar com o período e cometeu suicídio - uma história real que terei do livro Period. End of Sentence de Anita Diamant, mas uma pesquisa rápida devolve vários casos semelhantes:

 

"According to media reports, the girl's mother said a teacher had called her "dirty" for soiling her uniform and ordered her to leave the class. In Kenya, many girls cannot afford sanitary products such as pads and tampons and – despite the passage of a law in 2017 to provide free sanitary towels for schoolgirls – the girl had nothing to protect her clothes. She came home and told her mother about the incident but when the mother went to fetch water, she took her own life.

(...)

Access to menstrual products is a huge problem across sub-Saharan Africa, where an inability to afford sanitary products prompts many girls to avoid school during their periods. A 2014 Unesco report estimated that one in 10 girls miss school during menstruation, which means they miss out on 20% of their schooling each year"

(Tirado daqui e daqui)

 

Livro que também fala de mulheres que morreram por terem de ficar em lugares sem condições enquanto estavam menstruadas, pois não lhes é permitido estar em casa com a família, e de raparigas em países "civilizados" que também faltam às aulas por não terem dinheiro para comprar produtos de higiene (ou porque têm tantas dores que não se conseguem levantar da cama. Muitas vezes os médicos desprezam as queixas das mulheres - um estudo revela: "Women 32% more likely to die after operation by male surgeon"

O corpo feminino é um corpo em perigo constante. Outro dia encontrei uma lista de filmes e séries que mostram personagens femininas de um modo misógino\hiper-sexualizado. Tinha os suspeitos do costume incluindo séries que são: rape/torture porn for the male gaze. E isto fez-me pensar que é um bocado contraditório - por um lado a concordância de que as mulheres merecem respeito. Somos iguais. A violação é um crime. E por outro o tempo dispensado a ver séries onde mulheres são violadas constantemente. Penso: é isso excitante? É um bom entretenimento? É apelativa a ideia de dobrar qualquer mulher que apeteça? Mas continuaria a ser excitante se no lugar delas estivessem eles ou seria desconfortável? 

Aquilo que somos capazes de normalizar é impressionante. E as coisas não existem no vácuo, a ideia de ter a violação como entretenimento integrada na cultura popular é horripilante - uma manifestação de puro ódio (e uma arma de guerra, não nos esqueçamos). Um corpo destruído é um corpo que não consegue mais erguer a sua voz, especialmente quando as pessoas se recusam a acreditar. 1001 formas não de cozinhar bacalhau mas de destruir uma mulher [o patriarcado também mata homens, paradoxalmente]

"The opposite of rape is understanding", diz um poema. Não é só o corpo feminino, mas também os corpos não brancos e queer que estão sempre em perigo. A questão da empatia ficou de novo a burilar no meu espírito: empatia é ouvir uma vítima de violação; não é apenas entender um não dito de forma directa mas entender quando a outra pessoa está desconfortável - e não ter de a forçar a inventar desculpas para não ter que fazer sexo (btw aqui está outro dado: apenas cerca de 30% das mulheres têm um orgasmo provocado pela penetração - há muita preguiça e muitas mulheres não estão a receber o que merecem...); talvez seja comprar uma caixa de pensos para a outra pessoa e não exigir que fiquem escondidos fora da vista; talvez seja menos passar aulas a dissecar sapos e mais a aprender anatomia feminina.

Talvez seja deixar uma aluna ir à casa de banho durante um exame, calando alguém na fila atrás que protestou ao ver isso. Não é ver na televisão tantas pessoas a fugirem de conflitos e pobreza ao longo dos anos e só agora ocorrer ao pensamento que essas mulheres vão precisar de pensos, tampões ou panos limpos: uma manifestação de privilégio da minha parte. Só que não é conveniente ensinar isto aos rapazes, não vão eles abandonar a ideia de que têm de dominar e controlar a todo o custo. E assim se inventaram coisas como: os homens não conseguem ser empáticos porque vieram de Marte...Tenho a certeza que esse planeta vermelho nada tem que ver. Precisamos de mais produtos onde não sejamos desumanizadas. O corpo livre é um conceito revolucionário, séries inteiras poderiam ser escritas sobre ele.

Quem Escreve Aqui

Feminista * plus size * comenta uma variedade de assuntos e acha que tem gracinha * interesse particular em livros, História, doces e recentemente em filmes * talento: saber muitas músicas da Taylor Swift de cor * alergia ao pó e a fascistas * Blogger há mais de uma década * às vezes usa vernáculo * toda a gente é bem-vinda, menos se vierem aqui promover ódio e insultar, esses comentários serão eliminados * obrigada pela visita!

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