Reflexões a partir de chocolate
Não sei se já contei aqui aquela vez em que encontrei uma mega barra de chocolate numa caixa - é possível que sim, mas acompanhem-me na mesma porque é muito interessante e relevante. Enquanto partia o primeiro quadradinho lembrei-me de um artigo numa revista feminina que relacionava o modo como comemos chocolate com o modo como somos com os homens na cama, se metemos um monte de uma vez à boca, se vamos comendo em bocadinhos, se vamos deixando derreter...Sou adepta do primeiro modo porque sou gulosa e não há nada melhor do que chocolate (e queijo), mas já não me lembro do que isso queria dizer. Acho que a minha mente bloqueou essa informação. É incrível como um acto individual, eu a comer uma coisa gostosa, passou a incluir homens em pano de fundo.
Não é de espantar. Cada vez que virem algo nestas revistas que parece mesmo ter sido escrito para vocês ou virem um filme que até tem personagens femininas principais, tentem ver se não há alguma coisa potencialmente patriarcal infiltrada lá. É bem possível, pois segundo as regras deste mundo uma mulher deve fazer tudo em função dos homens, do que lhes agrada ou não, e esta ideia pode surgir disfarçada em coisas que até podem parecer modernas ("se o seu parceiro não a ouve, reexamine a sua capacidade de síntese". Não soa a um conselho moderno?). É como se as mulheres estivessem sempre acompanhadas por um coro masculino tipo coro de tragédia grega.
O meu acto de comer ficou também de repente imbuído de um sentido sexual. Mais uma vez nada que surpreenda. Tudo o que fazemos é sexualizado e comer é desde sempre encarado como uma cena excitante e cheia de segundos sentidos - mesmo que vocês gritem para a plateia que a vossa intenção é apenas aproveitar as coisas simples da vida e não convencer ninguém a enfiar-vos um pénis na boca. Acredito que é possível fazer um filme sem planos constantes das actrizes a lamber comida, sem lhes focar o rabo quando andam e sem obrigá-las a fazer movimentos sensuais que não contribuem o quer que seja para a narrativa. Às vezes não têm a sensação que é tudo feito apenas para um certo público?
(The Amazing Spider-Man No.601 Cover: Mary Jane Watson, J. Scott Campbell)
Não sei quanto a vocês mas mim parece-me a posição mais normal do mundo...Voltando ao chocolate: enquanto partia um segundo quadradinho lembrei-me também daqueles artigos dessas revistas que ensinam a controlar o que comemos e com conselhos de dietas e pensei que não devia ter saltado isso à frente e ido logo para os questionários (fazia todos, embora aos 15 anos ficasse em dúvida sobre o que responder em alguns pontos...Devia ter desconfiado dos que diziam que eu seria capaz de enlouquecer um tipo em sete dias. Consigo, mas acho que não no sentido que era sugerido) Comecei a sentir culpa. A insegurança é uma arma de submissão muito eficaz. Quantas coisas ruins derivam daí...
Ódio por nós mesmas, inveja e ódio pelas outras, excessivo enfoque no que os outros pensam e consequente ideia de nunca sermos atraentes que chegue para os homens o que por sua vez nos vai deixar vulneráveis a relações abusivas. É irónico que nas mesmas revistas se encontrem artigos sobre como as mulheres podem ser felizes consigo mesmas e aceitarem o corpo que têm. Também não devia ter saltado esses textos, pois se os tivesse lido não teria sentido culpa por comer chocolate. E assim um acto individual e natural transformou-se num exercício de culpa, cheio de contradições e dúvidas sobre o futuro no amor. Fiquei tão deprimida que acabei por comer metade da barra.