Queens of Chaos
Em a Arte de Pedir da Amanda Palmer há uma cena hilária em que ela está numa farmácia e grita bem alto para o Neil que está num outro corredor da loja, literalmente: querido, descobri onde estão os preservativos e os pensos!! E toda a gente à volta ficou a saber também. Ela admite que foi um bocado embaraçoso ("Meu bem, disse ele, você é humana afinal de contas. Ficou vermelha. É capaz de ficar sem graça. Eu sentia o rosto ardendo. Ele tinha razão"). De facto, há uma série de coisas que uma mulher pode dizer e que podem causar convulsões, às vezes frases com não mais de 4-5 palavras. Outro livro, lido mais recentemente, foi a Casa de Bonecas. Gostei muito e agora sempre que achar que tenho de diminuir o tom de um texto vou-me lembrar que o Ibsen publicou isto em 1879.
E posso acrescentar mais um item à lista de coisas que me arrepiam de maneira ruim: alturas, lesmas e Torvald Helmer. Pelo modo como concentra em si as características de uma sociedade patriarcal, disfarçando a sua condescendência e tentativas de manipulação sob uma capa de falsa protecção e amor. Esta é uma das razões porque o feminismo é preciso, para aprendermos a nos defender de Torvald Helmer. O mais assustador ainda é pensar quantas pessoas no século XXI lêem este livro e acham que se trata de uma jóia de marido. A dada altura Nora, o seu amado passarinho, diz-lhe: "Creio que antes de mais nada sou um ser humano, tanto quanto você". Um conceito revolucionário seja em 1879 ou em 2018. A desigualdade de género é um dos pilares sob o qual assenta esta sociedade.
Portanto quando vocês dizem que também são seres humanos, muitas mulheres já devem ter sentido vontade de gritar isto, estão a mexer com algo que está bem enraizado e a reclamar um estatuto que o patriarcado não vai vos dar pois isso implicaria a sua destruição e a destruição das estruturas que se alimentam de todos aqueles que não nasceram dentro do grupo privilegiado. Entendermos isto é o princípio de tudo, por isso se faz tanto esforço para que não cheguemos a essa conclusão. O que acontece quando descobrimos que não somos coisas? Vamos perceber o que está mal à nossa volta? Vamos protestar? Reclamar direitos?
Não é por acaso que uma definição menos académica de feminismo é: teoria que acredita que as mulheres são seres humanos. Lembrem-se disto cada vez que vos disserem que igualdade é bom e tal, mas feminismo nem pensar. Esta não é a única coisa que podem dizer passível de provocar confusão. Qualquer referência directa à vossa menstruação, por motivos já falados num post anterior, pior ainda se decidirem mostrar provas visuais. As mulheres desde cedo aprenderam a referir-se ao período por indirectas: tive algumas colegas que segurando uma bolsinha insuspeita diziam que tinham mesmo, mesmo de ir à casa de banho e era comovente quando um professor não levantava drama. O mesmo para a gravidez: a minha expressão preferida é - "viram que Maria estava naquele estado interessante". Mais uma referência que vem a calhar: no Tree Grows In Brooklyn há uma cena em que a protagonista analisa o modo como as mulheres de cada grupo encaram a gravidez.
Ela repara que as irlandesas (católicas e tal e tal) pareciam sempre cheias de vergonha. Quão errado e triste é um sistema que pune as mulheres por estarem prenhes e por não estarem..."Sim, vivo sozinha e gosto", "não, não quero filhos" [também na versão - "não, não gosto muito de crianças", a partir de certa idade é praticamente uma ofensa esta frase, ou "sim, deixei o miúdo com o pai para vir a esta reunião" - o que as pessoas ouvem: vocês tiveram o desplante de deixar o vosso marido a fazer de babysitter e não são suficientemente organizadas, porque se fossem conseguiam fazer as duas coisas o que aliás é vossa obrigação], "é verdade não faço a depilação à três meses"
"Não, não estou à procura de ninguém só estou a passar um tempo agradável com as minhas amigas e sim, eu gosto mesmo desta roupa" (fazerem coisas pensando apenas em vocês, como assim?); "sim, eu gosto de sexo" - era de esperar que um tipo ficasse entusiasmado com esta frase, mas uma boa parte parece fugir na direcção oposta ou pelo menos riscar-vos da lista de potencial material para casar. É difícil de entender a lógica deste sistema misógino. E é irónico que os homens sempre se tenham ao longo da História vangloriado das suas revoluções que mudaram o mundo (embora nós nunca tenhamos sido incluídas nessas mudanças) quando uma mulher pode começar uma revolução sem sair do âmbito do seu próprio corpo - e mais ainda se formos muitas a dizer a mesma coisa.