Lendo e sangrando - uma reflexão
No The Unwomanly Face of War da Svetlana algumas cenas tocaram-me particularmente. A bem dizer este livro como um todo é poderosíssimo e uma vez lido não pode ser esquecido. Por exemplo a cena das botas: a moça que ficou com os pés em carne viva depois de ter de marchar com botas tamanho 42 quando o dela era o 35 - não as faziam tão pequenas ("Então ficou claro que eu já não conseguia andar. Ordenaram a Párchin, o sapateiro da companhia, que, usando a lona de uma tenda velha, fizesse para mim botas tamanho 35…”)
É como as mulheres têm de viver neste mundo: nada é feito para nós, mas avançamos à mesma. Ou a cena em que duzentas raparigas vão marchando e atrás de si deixam um rasto de sangue, porque higiene feminina também não estava nas prioridades do exército ("Estávamos andando… Umas duzentas meninas, e atrás de nós uns duzentos homens. Fazia muito calor. Marcha em acelerado: trinta quilômetros. Trinta! Estávamos andando e, atrás de nós, começaram a aparecer manchas vermelhas na areia…Um rastro vermelho…Bem, era a…Nossa…Como você vai esconder isso?"). Esta cena também me impressionou porque durante muito tempo vivi obcecada com a maneira como as mulheres lidavam com estas questões em ambientes como este. Quando andei a pesquisar sobre mulheres na guerra, para um post, encontrei muitos nomes e histórias mas nada sobre este ponto em específico - nenhum livro ou documentário me esclarecia e às tantas comecei a pensar em introduzir este assunto em conversas aleatórias para ver o que as pessoas achavam.
Para termos respostas a isto era preciso ver a História do ponto de vista das mulheres, como a Svetlana fez na sua obra, e só escrever aqui esta ideia faz três veneráveis historiadores rebolarem-se na tumba e mais três terem uma apoplexia e acabarem na tumba também eles. De bom grado trocaria toda uma colecção de volumes sobre imperadores por algo que me falasse sobre como era a vida das mulheres que entravam disfarçadas de homem nas embarcações que iam para a Índia. Este tema do sangue voltou enquanto relia os dois livros referidos no post anterior: no Memorial há uma cena em que depois de terem estado juntos blimunda molha o dedo no seu sangue (ela era virgem) e depois de se persignar faz uma cruz no peito do Baltasar.
A primeira vez que li isto não achei lindo e absolutamente herético como agora, mas também só tinha 17 anos. Entretanto no Jane Eyre houve uma cena que me fez pensar: é quando Rochester pergunta à Jane (eu amo estes dois e o livro como um todo, acho que ainda não tinha ficado explícito aqui) se desmaia quando vê sangue. Claro que há um contexto, que é haver um ferido no andar de cima - mas fez-me pensar no que já vi muitas vezes em séries e filmes onde aparentemente se ignora a ideia básica que qualquer pessoa pode cair para o lado perante uma grande quantidade de sangue. E no dia-a-dia eu tenho a certeza que vejo mais sangue que a maioria dos homens - a menos que algum já tenha dado um duche no primeiro dia em que está com o período.
Este gif nunca fica velho...De facto alguns homens não sabem nada. Cada vez aprecio mais quando autoras falam ou incluem na sua história detalhes sobre coisas que são intrinsecamente femininas. No seu livro Cheryl Strayed fala de como usou uma esponja menstrual (e de como logo seguir teve que cumprimentar um sujeito - "Apertei sua mão, ciente de onde a minha estava há pouco"). Alguns "críticos" não gostaram muito da inclusão destes detalhes, mas isso diz mais sobre eles do que sobre o livro. A nossa experiência é importante - nunca é demais repetir isto. Negar as funções corporais a uma mulher é negar-lhe a sua humanidade.
É a ideia da mulher-boneca cuja a única função deve ser estar "apresentável" e que deve ser limpinha. Coloca uma vergonha imensa sobre os nossos ombros e é contraditório: existe, mas finge-se que não? Cria inseguranças e é uma das coisas que está na base do tabu do envelhecimento feminino. Os homens não envelhecem melhor que nós, simplesmente é lhes permitido fazer isso. O problema é tão sério que mesmo nos anúncios a produtos de higiene feminina não aparece nada vermelho e nos anúncios a produtos de depilação não há pernas peludas. Acho que Já falei aqui disto uma vez: em séries apocalípticas os homens vão ficando com um aspecto sebento e desarranjando enquanto nas mulheres nem se lhes vê um pelinho. Aqui está incluido a negação das necessidades sexuais: as mulheres não fodem, só fazem amor. Bullshit. Curiosamente dos quatro filmes nomeados para os Óscares que vi dois tinham mulheres sozinhas na banheira num momento de diversão...